Imediatamente
após o seu preâmbulo, a Constituição brasileira oferece a seus leitores aquilo
que é considerado por muitos como seu “Núcleo Duro”, devidamente registrado no caput do seu primeiro artigo: “Art. 1º A República Federativa do Brasil,
formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal,
constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: (...).”
Assim, antes mesmo de indicar os fundamentos da República, a Constituição já
trata de declarar os princípios que estruturam o Estado brasileiro, materializando-o
juridicamente como uma República, Federativa, e como Estado Democrático de
Direito. Mas, afinal, o que isso significa?
Como
República, pretende a Constituição garantir o aspecto público do Estado, e das
coisas que lhe tocam (coisa pública), em nítida separação com os bens e
interesses dos particulares. Ou seja, o Estado, sendo público, deve agir no
interesse público, mediante responsabilidade dos agentes estatais, prestando satisfação de seus atos,
e não se guiando por interesses particulares de quem quer que dele possa tentar
se apropriar em prejuízo do interesse coletivo. Acabam se relacionando a
referido princípio a forma como a sociedade delega os poderes aos seus agentes
públicos (via de regra por eleições para mandatos temporários ou por concurso),
a divisão de poderes e competências e o obedecimento à lei.
Como
Federação, o Estado, ao dividir-se em porções administrativas menores, dotadas
de autonomia para buscar seus interesses e regular-se conforme a vontade de
seus habitantes (ainda que nos limites dados pela Constituição Federal -
visando ao equilíbrio e proteção dos interesses do Estado como um todo), almeja
a uma maior facilidade na administração das diversidades regionais, a
desconcentração do poder político e a aproximação entre governantes e
governados.
Como
Estado Democrático de Direito, a Constituição estabelece a forma como as
relações entre os indivíduos e o Estado se efetivarão: através da lei (tomada
aqui em sentido amplo), elaborada com anuência da população (segundo a regra da
maioria), que a estabelece direta ou indiretamente (via representantes).
Especialmente controversa é a questão do significado da “democracia”, sendo
comum nos países ocidentais sua equiparação à chamada “democracia liberal”, que
além de guiar-se pelo critério da maioria, busca preservar certos direitos
fundamentais mesmo contra uma possível vontade da maioria (direitos essencialmente
ligados á idéia de liberdade – de pensamento, de organização, de imprensa,
etc), e, nesse sentido, dedicando especial atenção às garantias das minorias.
Referidos
princípios são considerados o Núcleo duro por serem os elementos que constituem
a própria estrutura do Estado, e é por meio dessa estrutura que será possível
garantir todos os outros direitos estabelecidos na Constituição. Juridicamente
imutáveis (senão por meio de uma nova Constituição), são como uma espécie de materialização
de âmbito jurídico do Estado, na medida em que é somente a partir deste corpo definido
no caput do art. 1º que o Estado pode atuar e, assim, buscar seus objetivos (devidamente
traçados nos artigos e incisos que lhe seguem).
É sabido,
contudo, que, em matéria de direito, muitas vezes os conceitos carecem da
objetividade que pensamos ser necessária para que todos possam compreender
exatamente o que com eles se pretende dizer. E assim não deixaria de ser também
com os princípios basilares do Estado (o chamado núcleo duro), apostos na
Constituição. Assim, sem desconsiderar o especial papel desempenhado pela
análise da evolução histórica dos conceitos, muitos desses somente conseguirão ser
devidamente delimitados e especificados por meio das discussões político-jurídicas
efetuadas pela sociedade e pelas instituições, até que sejam sedimentadas as
ideias mais ou menos dominantes a seu respeito. E como fruto desses debates,
outorga a Constituição a palavra final (ao menos do ponto de vista jurídico),
ao Supremo Tribunal Federal, nossa Corte Constitucional. A propósito disso, especialmente
nos últimos tempos, o Supremo Tribunal Federal tem sido chamado a delimitar na
prática algumas questões envolvendo referidos princípios.
Em relação
ao princípio republicano, o STF tem sido incisivo, por exemplo, na questão do
nepotismo, tendo mesmo sido proposta a súmula vinculante n. 13, proibindo aos
agentes públicos de todos os níveis o emprego de parentes, tendo em vista essa
prática contrariar os princípios republicanos constantes no art. 37 da
Constituição (impessoalidade, moralidade, etc.). Do mesmo modo, no tocante ao
processo eleitoral, houve a discussão sobre uma possível proibição de
candidatos processados serem eleitos, ou, ainda, a iniciativa do parlamento
sobre matéria relativa o regime dos servidores públicos (cuja iniciativa
Constitucional é do Poder Executivo – separação de poderes).
Em relação
ao princípio federativo, uma aparente tendência do STF no sentido de prestigiar
a autonomia dos Estados membros pode ser visualizada, por exemplo, na decisão
que deu ganho de causa a Estado que decidiu legislar contrariamente aos
interesses das indústrias, em favor da saúde e do consumidor. Outro caso foi o
da lei estadual que garantia meia-entrada em espetáculos para doadores
de sangue, considerada constitucional pelo STF, ou outra que exigia que as
empresas fabricantes de café colocassem certas informações nos rótulos, ou,
ainda, considerando inconstitucional a requisição da União de bens municipais
em situações normais.
No
tocante ao princípio Democrático (de Direito), o STF confirmou o referendo
sobre a divisão do Estado do Pará, estendeu os direitos das Uniões Homoafetivas,
e conduziu as discussões sobre as pesquisas com material genético humano, cotas
para minorias, entre outros temas polêmicos que têm surgido nessa virada de
século.
Mas a
questão das definições e aplicações práticas dos princípios continuarão, especialmente
na medida em que mais pessoas adentram na discussão, tornando-as efetivamente mais
democráticas, e acirrando o embate político, com reflexos no seu viés jurídico,
e moldando essas definições e utilizações às novas realidades e relações
sociais que vão se formando ao longo do processo histórico.
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