11 de agosto de 2012

O "núcleo duro" da Constituição


Imediatamente após o seu preâmbulo, a Constituição brasileira oferece a seus leitores aquilo que é considerado por muitos como seu “Núcleo Duro”, devidamente registrado no caput do seu primeiro artigo: “Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: (...).” Assim, antes mesmo de indicar os fundamentos da República, a Constituição já trata de declarar os princípios que estruturam o Estado brasileiro, materializando-o juridicamente como uma República, Federativa, e como Estado Democrático de Direito. Mas, afinal, o que isso significa?

Como República, pretende a Constituição garantir o aspecto público do Estado, e das coisas que lhe tocam (coisa pública), em nítida separação com os bens e interesses dos particulares. Ou seja, o Estado, sendo público, deve agir no interesse público, mediante responsabilidade dos agentes estatais, prestando satisfação de seus atos, e não se guiando por interesses particulares de quem quer que dele possa tentar se apropriar em prejuízo do interesse coletivo. Acabam se relacionando a referido princípio a forma como a sociedade delega os poderes aos seus agentes públicos (via de regra por eleições para mandatos temporários ou por concurso), a divisão de poderes e competências e o obedecimento à lei.

Como Federação, o Estado, ao dividir-se em porções administrativas menores, dotadas de autonomia para buscar seus interesses e regular-se conforme a vontade de seus habitantes (ainda que nos limites dados pela Constituição Federal - visando ao equilíbrio e proteção dos interesses do Estado como um todo), almeja a uma maior facilidade na administração das diversidades regionais, a desconcentração do poder político e a aproximação entre governantes e governados.

Como Estado Democrático de Direito, a Constituição estabelece a forma como as relações entre os indivíduos e o Estado se efetivarão: através da lei (tomada aqui em sentido amplo), elaborada com anuência da população (segundo a regra da maioria), que a estabelece direta ou indiretamente (via representantes). Especialmente controversa é a questão do significado da “democracia”, sendo comum nos países ocidentais sua equiparação à chamada “democracia liberal”, que além de guiar-se pelo critério da maioria, busca preservar certos direitos fundamentais mesmo contra uma possível vontade da maioria (direitos essencialmente ligados á idéia de liberdade – de pensamento, de organização, de imprensa, etc), e, nesse sentido, dedicando especial atenção às garantias das minorias.

Referidos princípios são considerados o Núcleo duro por serem os elementos que constituem a própria estrutura do Estado, e é por meio dessa estrutura que será possível garantir todos os outros direitos estabelecidos na Constituição. Juridicamente imutáveis (senão por meio de uma nova Constituição), são como uma espécie de materialização de âmbito jurídico do Estado, na medida em que é somente a partir deste corpo definido no caput do art. 1º que o Estado pode atuar e, assim, buscar seus objetivos (devidamente traçados nos artigos e incisos que lhe seguem).

É sabido, contudo, que, em matéria de direito, muitas vezes os conceitos carecem da objetividade que pensamos ser necessária para que todos possam compreender exatamente o que com eles se pretende dizer. E assim não deixaria de ser também com os princípios basilares do Estado (o chamado núcleo duro), apostos na Constituição. Assim, sem desconsiderar o especial papel desempenhado pela análise da evolução histórica dos conceitos, muitos desses somente conseguirão ser devidamente delimitados e especificados por meio das discussões político-jurídicas efetuadas pela sociedade e pelas instituições, até que sejam sedimentadas as ideias mais ou menos dominantes a seu respeito. E como fruto desses debates, outorga a Constituição a palavra final (ao menos do ponto de vista jurídico), ao Supremo Tribunal Federal, nossa Corte Constitucional. A propósito disso, especialmente nos últimos tempos, o Supremo Tribunal Federal tem sido chamado a delimitar na prática algumas questões envolvendo referidos princípios.

Em relação ao princípio republicano, o STF tem sido incisivo, por exemplo, na questão do nepotismo, tendo mesmo sido proposta a súmula vinculante n. 13, proibindo aos agentes públicos de todos os níveis o emprego de parentes, tendo em vista essa prática contrariar os princípios republicanos constantes no art. 37 da Constituição (impessoalidade, moralidade, etc.). Do mesmo modo, no tocante ao processo eleitoral, houve a discussão sobre uma possível proibição de candidatos processados serem eleitos, ou, ainda, a iniciativa do parlamento sobre matéria relativa o regime dos servidores públicos (cuja iniciativa Constitucional é do Poder Executivo – separação de poderes).

Em relação ao princípio federativo, uma aparente tendência do STF no sentido de prestigiar a autonomia dos Estados membros pode ser visualizada, por exemplo, na decisão que deu ganho de causa a Estado que decidiu legislar contrariamente aos interesses das indústrias, em favor da saúde e do consumidor. Outro caso foi o da lei estadual que garantia meia-entrada em espetáculos para doadores de sangue, considerada constitucional pelo STF, ou outra que exigia que as empresas fabricantes de café colocassem certas informações nos rótulos, ou, ainda, considerando inconstitucional a requisição da União de bens municipais em situações normais.

No tocante ao princípio Democrático (de Direito), o STF confirmou o referendo sobre a divisão do Estado do Pará, estendeu os direitos das Uniões Homoafetivas, e conduziu as discussões sobre as pesquisas com material genético humano, cotas para minorias, entre outros temas polêmicos que têm surgido nessa virada de século.

Mas a questão das definições e aplicações práticas dos princípios continuarão, especialmente na medida em que mais pessoas adentram na discussão, tornando-as efetivamente mais democráticas, e acirrando o embate político, com reflexos no seu viés jurídico, e moldando essas definições e utilizações às novas realidades e relações sociais que vão se formando ao longo do processo histórico.

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REFLEXÕES E DIVAGAÇÕES - A morte do artista

"Quem matou o artista? Há assim várias hipóteses. E também vários suspeitos. Foi o martelo do operário? Ou foi apenas um acidente de trabalho? Foi a caneta do burocrata? Ou se intoxicou com a tinta dos carimbos? Ou foi o giz da sala de aula? Foi uma bala perdida? Ou ela era direcionada? Ou talvez tenha morrido de fome, para aumentar os lucros dos investidores?


O artista morreu, mas se recusa a ser enterrado
Levanta-se do caixão e corre desatinado
Nu pelos campos
Causando espanto entre as velhas senhoras da sociedade
As pessoas se espantam e gritam
E os senhores engravatados se reúnem:
O artista só faz perturbar a ordem!
E isso não é bom para os negócios
Quem vai conseguir enterrar o artista
e conseguir enfim estabelecer a ordem no mundo?

O artista tem o peito aberto
Por onde escorrem-lhe as entranhas
É agora um zumbi, um verme, um corvo
Transformando o podre em nova vida
E produz mau cheiro
Chafurda a morte
Tem um vômito ácido
Mas toma um Sonrisal® e segue em frente


Já não tem fígado ou pulmão
E o coração está em pedaços
E ainda assim, de suas tripas espalhadas,
Constrói sua obra-prima"

(Paulo A.C.B.Jr)