19 de setembro de 2009

Por que estudar Filosofia do Direito?

Ao falarmos em filosofia, devemos ter em mente uma disciplina cujo objetivo é nos direcionar a um aprimoramento das formas de pensar. Para tanto, usa como método a investigação crítica e racional daquilo que toma como objeto.

A Filosofia do Direito, por sua vez, tem como preocupação refletir e questionar, entre outras coisas, o objetivo do sistema jurídico, procurando construir uma visão crítica acerca dele. Dessa forma, além de haver uma contribuição com a evolução do pensamento, aumentam-se as condições de que sejam apresentadas alternativas eficazes aos problemas e práticas vivenciados pela sociedade e pela comunidade jurídica.

Utiliza-se, assim, o poder da reflexão racional para descobrir o que há de errado em nossas práticas, e para substituir por práticas melhores, sempre envolto em um sistema possibilitador de criticidade, dessacralizando temas, dissecando a realidade, de forma a revelar muitas vezes “verdades ocultas” escondidas sob o manto de um discurso ideológico, falsificador de verdades.

À Filosofia do Direito compete dar subsídios capazes de fazer com que o indivíduo seja capaz de tomar eficientemente decisões relacionadas ao Direito, bem como pesar alternativas, fazer escolhas, considerar argumentos e resolver de alguma forma os problemas que lhe são apresentados.

Para tanto, à Filosofia do Direito caberia apresentar ao estudante as várias formas de pensar o Direito, situando-o dentro do processo de discussão histórico, incentivando a análise das diversas respostas dadas pelos pensadores às diversas questões propostas, favorecendo e estimulando a formação de um senso crítico em relação aos conhecimentos que lhe são apresentados, e fornecendo, assim, subsídios para o aprimoramento do exercício jurídico.


Preocupações concernentes à disciplina de Filosofia do Direito:

O que é Justiça?
Se todo mundo cumprisse a lei haveria Justiça?
Qual a relação entre Direito e Justiça?
Qual a relação entre Ética, Ciência, Direito e Filosofia?
Qual a função do Direito na sociedade?
O Direito reproduz a vontade geral?
O Direito deve reproduzir a vontade popular ou deve se orientar ao aprimoramento da sociedade?
Qual a papel do Juiz na aplicação do Direito?
Qual fator exerce maior influência sobre decisão de um Juiz: a lei ou a ideologia?
Qual a importância de conhecer o ser humano para o operador do Direito?
Quais os fatores responsáves por nossa forma de ver o mundo?
Todo conhecimento é ideológico?
Educação leva à Justiça?
Qual o papel do acadêmico e do operador do Direito?

17 de setembro de 2009

IDEALISMO X MATERIALISMO - Resumo da Filosofia até Sartre

(Resumo didático para a disciplina de Filosofia do Direito)

Em sentido amplo, idealismo e materialismo referem-se a um conjunto de doutrinas que permearam a história do pensamento filosófico, relacionando-se com diversas outras correntes como atomismo, empirismo, relativismo, racionalismo, mecanicismo, determinismo, jusnaturalismo, positivismo etc.

O atomismo (que afirma que tudo é composto por partículas de matéria) de Leucipo e Demócrito (filósofos da Grécia pré-socrática) exerceu influência sobre o materialismo moderno. Da mesma forma, o relativismo dos sofistas (contemporâneos de Sócrates) antecipava o pensamento daqueles que defendiam não haver um “algo” absoluto acima ou orientando aquilo que seria, assim, tão-somente o resultado da organização circunstancial das forças materiais que compõem o mundo.

O idealismo (cujo primeiro grande expoente dentro da filosofia ocidental foi Platão, influenciado por Sócrates, e ambos influenciados em grande medida pela escola de Pitágoras) era contrário a esse relativismo, defendendo a existência do absoluto, acessível ao homem através da razão e do mundo das idéias. O absoluto (que existia apenas no mundo das idéias), orientava a construção e organização do mundo (via lógica racional, idéias inatas, formas geométricas, números, idéias criadoras, etc).

Mais estritamente (sentido estrito), idealismo e materialismo referem-se a um conjunto de doutrinas formuladas especialmente na Alemanha nos séculos XVIII e XIX, tendo como maiores expoentes Kant, Hegel (representantes do idealismo) e Marx (representante do materialismo).

ESBOÇO HISTÓRICO

Período anterior ao surgimento da filosofia: Homero, Hesíodo, mitologia popular. Explicações divinas para os acontecimentos da existência. Obras: Ilíada, Odisséia, Teogonia, relatos míticos do oriente, Pentateuco, etc.

Surgimento da Filosofia: Busca por explicações mais racionais para os fenômenos com base na reflexão e na argumentação racional.

Filósofos da Natureza: Tales, Anaximândro, Anaxímenes e outros. Tinham como objeto de estudo a Natureza (a matéria de que era formada, as leis que regiam os acontecimentos, etc).

Heráclito: Propunha que tudo estava em constante movimento. O mundo não era algo estático, mas uma eterna transformação.

Dialética: O mundo como resultado da oposição constante de forças contrárias, o que torna obrigatória sua constante transformação; um eterno vir-a-ser. Sócrates considerava Zenão de Eléa o pai da dialética. Contudo, o significado de dialética para Sócrates era mais restrito que o contemporâneo, guardando maior relação com a arte do diálogo. Atualmente se reconhece a grande influência de Heráclito no desenvolvimento da dialética.

Parmênides: Contrário ao relativismo de Heráclito, afirmava que o ser era absoluto e, assim, uno e imutável. O movimento era apenas aparente, uma ilusão. Tem-se que a visão de Parmênides prevaleceu sobre a de Heráclito durante a maior parte da história do pensamento ocidental (favorecendo a crença na existência do absoluto).

Demócrito (séc V e IV a.C.): Atomismo/Materialismo. Inspirado por Leucipo, acreditava que tudo era composto por partículas de matéria. Suas idéias influenciaram o mecanicismo moderno (visão do mundo como uma máquina).

Materialismo: Tudo o que existe no mundo é decorrente de circunstâncias materiais, inclusive o pensamento e os valores humanos.

Sofistas (séc V e IV a.C.): Relativismo. Acreditavam que as circunstâncias materiais/argumentação definiriam de forma dinâmica questões tidas como absolutas para os racionalistas, como Sócrates e Platão. Não se apegavam a valores absolutos, mas defendiam o aprimoramento na arte da argumentação.

Relativismo: Não existem verdades absolutas, apenas relativas. Cada indivíduo pode ter a sua verdade; ou a verdade é decorrente de um consenso alterável no tempo.

Sócrates: Fazia oposição aos sofistas por entender que nem tudo podia ser relativizado, e que deveria haver valores absolutos e universais. Não deixou obra escrita e o conhecemos através da obra de seu discípulo Platão.

Platão (séc V e IV a.C.): Idealismo. Baseado nas idéias de Pitágoras e Sócrates, e conjugando o relativismo material de Heráclito e o absolutismo ideal de Parmênides, desenvolve um sistema que afirma a existência de um algo superior que condiciona a existência do mundo material (formas, valores, etc).

Idealismo: Doutrina que prega que o mundo material é determinado/condicionado pelas idéias. Normalmente pode ser associado também ao racionalismo (doutrina que prega que a verdade pode ser alcançada pela razão).

Aristóteles (384-322 a.C): Empirismo. Retoma o estudo da Natureza, criando métodos de investigação que influenciariam o desenvolvimento da Ciência moderna. Mantém a tradição racionalista (razão como forma de atingir a verdade). Sua obra sobre ética é referência de destaque no âmbito do conhecimento ocidental.

Empirismo: Ênfase na verificação dos fenômenos através dos sentidos (experiência), para o estabelecimento do conhecimento confiável, não se prendendo a meras especulações racionais. Base da ciência moderna.

Estóicos (séc III e IV a.C.): Afirmam que todo universo corpóreo é governado por uma razão divina, que lhe garante a harmonia (kosmos). No plano moral, pregavam a serenidade e a impassibilidade em face da dor ou do infortúnio. Propõem viver de acordo com a lei racional da natureza e aconselha a indiferença (apathea) em relação a tudo que é externo ao ser.

Estoicismo: “A mente humana é concebida como uma tabula rasa. Como em Aristóteles, o conhecimento parte dos dados imediatos do sentido; mas, diversamente de Aristóteles, o conhecimento é limitado ao âmbito dos sentidos, não obstante as repetidas e múltiplas declarações estóicas em louvor da razão. O conhecimento intelectual nada mais pode ser que uma combinação, uma complicação quantitativa de elementos sensíveis.

A metafísica estóica reduz-se à física, porquanto é radicalmente materialista: se tudo é material, toda atividade é movimento, devem-se conceber materialisticamente também Deus, a alma, as propriedades das coisas. Esta matéria está em perpétuo vir-a-ser, conforme a concepção de Heráclito; e a lei desse princípio material só pode ser, naturalmente, uma necessidade mecânica, à maneira de Demócrito.”

Epicuristas (séc III e IV a.C.): Afirmavam que a verdade provinha apenas da sensação. Tinham uma ética baseada no prazer, desde que não fosse buscado egoisticamente ou em prejuízo dos demais. Epicuro acreditava em deuses, mas defendia que eles não interviriam no mundo material.

Ceticismo (séc III e IV a.C.): Defendia que as verdades a respeito do Universo seriam inacessíveis ao ser humano. Sexto Empírico acreditava que, embora a base do conhecimento fosse os sentidos, estes possuíam limitações, que distorciam a imagem do mundo real que chega até nós, apresentando-nos ilusões.

Ceticismo: Atitude ou doutrina segundo a qual o homem não pode chegar a qualquer conhecimento indubitável, quer nos domínios das verdades de ordem geral, quer no de algum determinado domínio do conhecimento. (Dicionário Aurélio)

Idade Média: Retomam-se as idéias platônicas, aprofundando-lhe seu sentido místico, criando-se o Neoplatonismo. A idéia de que haveria o perfeito e o absoluto em algum mundo superior, responsável pela orientação do mundo material, ofereceu suporte teórico para uma tradição de pensamento mais religioso. Com a queda do Império Romano do Ocidente no ano de 476, a Igreja torna-se a principal responsável pela manutenção das tradições e da união entre as novas populações (que iniciaram à época as configurações do que seria a Europa como a conhecemos).

Patrística:

Agostinho (354-430): “Filosofia cristã”. Neoplatonismo (idealismo). Escola patrística: Primeiros padres e bispos do cristianismo. Organização da Igreja Católica. Organização da Bíblia.

Escolástica:

Tomás de Aquino (1225-1274): Neoplatonismo influenciado pela redescoberta das obras de Aristóteles. Escolástica: Igreja um pouco mais racional. Razão utilizada para justificar a fé.

William (ou Guilherme) de Ockham (1285-1347): Escolástica. Aprofunda a lógica racional.

Transição Idade Média – Idade Moderna - Renascimento

Copérnico (1473-1543): “retira” a Terra do centro do Universo, colocando-a como apenas uma parte do sistema solar. Suas idéias causariam impacto sobre as estruturas da Igreja, cujo poder se baseava na ideologia da Terra como lugar escolhido por Deus no centro do Universo.

Giordano Bruno (1548-1600): Materialismo pampsiquismo. Foi queimado pela inquisição por defender uma espécie de panteísmo (“o mundo é Deus”), que teria influenciado posteriormente o panteísmo de Spinoza.

Determinismo: Todos os fenômenos, em todos os tempos, são condicionados pelos fenômenos que os antecedem, determinando, assim, da mesma forma, os fenômenos que lhe sucedem. Conhecer todas as variáveis envolvidas no processo passa a ser o objetivo principal, sendo esta uma exigência para que seja possível prever com alto grau de acerto a ocorrência do evento seguinte. Não haveria lugar para incertezas uma vez que se conhecesse o funcionamento do sistema, e o objetivo passa a ser a evolução desse conhecimento, com a conseqüente redução da margem de erro nos resultados.

Aplicando o determinismo no plano das relações humanas, tem-se que toda decisão humana é determinada por elementos anteriores. Não haveria, assim, espaço para a liberdade. Há, em menor grau, também escolhas aleatórias ou baseadas no acaso. Em nenhum dos casos, contudo, haveria a presença do livre-arbítrio.

Determinismo: “Relação entre os fenômenos pela qual estes se acham ligados de modo tão rigoroso que, a um dado momento, todo fenômeno está completamente condicionado pelos que o precedem e acompanham, e condiciona com o mesmo rigor os que lhe sucedem. Se relacionado a fenômenos naturais, o determinismo constitui o princípio da ciência experimental que fundamenta a possibilidade de busca de relações constantes entre os fenômenos; se se refere a ações humanas e a decisões da vontade, entra em conflito com a possibilidade da liberdade.” (Dicionário Aurélio)

O embate Empirismo X Racionalismo

O racionalismo afirma que nascemos trazendo em nossa inteligência não só os princípios racionais, mas também algumas idéias verdadeiras, que, por isso, são idéias inatas. O empirismo, ao contrário, afirma que a razão, com seus princípios, seus procedimentos e suas idéias, é adquirida por nós através da experiência. Para os empiristas, a mente sem qualquer experiência é uma Tabula rasa (do latim, "folha em branco").

Os empiristas defendiam a ênfase na experiência, sendo por isso contrários às especulações racionais não baseada em verificações da realidade, opondo-se assim aos racionalistas, que afirmavam que as verdades devem ser buscadas pela razão, devendo-se afastar os elementos sensoriais, uma vez que estes seriam subjetivos e falhos.

Francis Bacon (1561-1626) (britânico): Empirismo. Ênfase na experiência, na verificação. Pressupostos para definir o que é ou não verdade. Retomou o empirismo de Aristóteles, influenciando a ciência moderna. Promoveu uma reforma do conhecimento justificada em uma crítica à filosofia anterior (especialmente a Escolástica), considerada estéril por não apresentar nenhum resultado prático para a vida do homem. O conhecimento científico, para Bacon, tem por finalidade servir o homem e dar-lhe poder sobre a natureza.

Descartes (1596-1650) (francês): Racionalismo. Estabelecimento de regras segundo a lógica racional. Preocupação com a criação de métodos racionais. Raciocínio dedutivo. O mundo enxergado como uma grande máquina. Um dos filósofos mais influentes para a modernidade ocidental. Também pretendeu uma reforma do conhecimento como superação da filosofia da Idade Média. Duvidou de todo conhecimento que era difundido à época para, começando do zero, encontrar conhecimentos racionalmente seguros.

Spinoza (1632-1677) (holandês): Racionalismo. Sua ética foi escrita sob a forma de postulado e definições, como se fosse um tratado de geometria. Panteísmo. Considerava Deus, ou as leis da natureza, a causa interna de tudo o que acontece.

Leibniz (1646-1716) (alemão): Racionalismo. Possuidor de um pensamento considerado otimista que pode ser resumido na afirmação de que, sendo o universo criado por Deus, nele se torna possível conciliar o máximo de bem e o mínimo de mal, o que faz dele "o melhor dos mundos possíveis".

John Locke (1632-1704) (britânico): Empirismo, Iluminismo e Liberalismo. Grande ideólogo do liberalismo, a filosofia política de Locke fundamenta-se na noção de governo consentido dos governados diante da autoridade constituída (Contrato Social) e o respeito aos direitos naturais do ser humano (especialmente a vida, a liberdade e a propriedade). Influencia as modernas revoluções liberais: Revolução Inglesa, Revolução Americana e na fase inicial da Revolução Francesa, oferecendo-lhes uma justificação da revolução e a forma de um novo governo.

Iluminismo: Movimento filosófico do séc. XVIII que se caracterizava pela confiança no progresso e na razão, pelo desafio à tradição e à autoridade e pelo incentivo à liberdade de pensamento. (Dicionário Aurélio)

Direito Natural: Movimento que prega a existência de um Direito acima e orientando o direito positivado. Um Direito que seja inerente à existência e natureza humanas, como os direitos à vida, liberdade, dignidade, etc., inalienáveis e irrevogáveis por qualquer legislação. Exerceu uma influência profunda no movimento do racionalismo jurídico do século XVIII, quando surge a noção dos direitos fundamentais, e no desenvolvimento da common law inglesa. Essas idéias foram criticadas pelos Positivistas, que pretenderam reduzir o direito à produção jurídica material.

Berkeley (1685-1753) (britânico): Empirismo, Idealismo subjetivo: As coisas só existem como percepções, como objetos da consciência.

Isaac Newton (1643-1727) – criador da física moderna.

David Hume (1711-1776) (britânico): Empirismo e Iluminismo. Segundo Hume, às vezes formamos idéias e noções complexas, para as quais não há correspondentes na realidade material. No fundo, a mente não inventou nada. Ela só teve o trabalho de pegar tesoura e cola para construir essas noções falsas.

FILOSOFIA CONTEMPORÂNEA: o objeto de estudo deixa de ser a realidade percebida, voltando-se para o sujeito do conhecimento. Surgimento do Idealismo e Materialismo em sentido estrito.

Immanuel Kant (1724-1804): Idealismo. Uniu o racionalismo continental europeu com o empirismo britânico (especialmente de Hume), criando uma filosofia crítica acerca do sujeito do conhecimento. O homem jamais alcançaria o conhecimento sobre um objeto em sua totalidade, apenas aproximações sucessivas, em uma eterna evolução do conhecimento. As idéias são frutos da experiência, condicionadas às estruturas a priori da razão (quantidade, qualidade, relação, etc). O intelecto proporciona a forma e a experiência oferece o conteúdo. Kant considera que não é o sujeito que, conhecendo, descobre as leis do objeto, mas sim, ao contrário, que é o objeto, que é conhecido, que se adapta às leis do sujeito que o recebe cognoscitivamente. Essas estruturas, portanto, enquanto tais, são a priori, precisamente porque são próprias ao Sujeito e não do objeto, mas são estruturas de tal natureza que representam as condições sem as quais não é possível nenhuma experiência de nenhum objeto. A filosofia volta-se ao próprio conhecimento, questionando os fundamentos de validade do próprio pensar. Para Kant, o elemento sensível no comportamento moral não pode ser pressuposto, mas, ao contrário, deve ser deduzido da racionalidade pura. Defendia uma ética baseada na liberdade e no senso de bem comum, de forma a cada um agir de tal modo que essa ação pudesse ser considerada uma regra universal.

Outros pensadores idealistas: Fichte (1762-1814) e Schelling (1775-1854).

Séc XIX (1801-1900) - Pós-Revolução Francesa

Hegel (1770-1831): Idealismo absoluto. Introduziu o elemento histórico e dialético (este último retomado dos filósofos gregos, em especial Heráclito, para quem tudo é transformação) que seria definitivo nas análises filosóficas posteriores, em especial o materialismo dialético de Karl Marx. Segundo seu pensamento, a evolução da história do homem é o reflexo de sua busca pela liberdade. A razão define a realidade, e a verdade (espírito do mundo) é resultado de uma evolução histórica.

Feuerbach (1804-1872): De formação hegeliana, rejeita o idealismo em favor de um materialismo humanista.

Materialismo: Segundo os materialistas do séc. XIX, são as condições materiais de existência que condicionam as idéias e valores dos homens.

Karl Marx (1818-1883): Materialismo. Primeiro grande materialista contemporâneo, inaugura um movimento crítico acerca das verdades postas pelo que ele considerava ideologia burguesa, ou seja, modos de pensar que alienam os seres humanos em favor de determinados grupos que detêm os meios de produção. Filosofia e Ciência se misturam em uma busca crítica pela real descrição do funcionamento da sociedade e pela formação do pensamento humano. Mantém a dialética de Hegel, substituindo o idealismo pelo materialismo.

Charles Darwin (1809-1882): Cientista britânico (biólogo). Desenvolveu uma espécie de materialismo biológico, ao afirmar que o mundo como o vemos é resultado das interações materiais da natureza, que não seguiriam nenhum preceito absoluto, mas apenas as leis da reprodução e da sobrevivência. Ao colocar o homem como mero produto da evolução natural entrou em confronto com a ideologia dominante, que tinha o homem como centro da criação divina. Suas idéias são combatidas até hoje por grupos religiosos mais conservadores, por entenderem que elas contrariam a teoria criacionista baseada na Bíblia.

Friedrich Nietzsche (1844-1900). Filósofo alemão. Considerado por muitos um antecipador e fomentador do relativismo que predominou no século XX, propôs uma crítica feroz aos valores disseminados na sociedade, especialmente aos valores cristãos. Estimulava o desenvolvimento de uma moral própria, ligada à existência e à Terra, isenta de manipulações ideológicas, buscando a evolução do homem em direção ao que ele chamou de super-homem (ou “além do homem atual”; superação constante; evolução. Sua ética se baseava na coragem frente à ausência de um sentido metafísico na experiência de existir).

Sigmund Freud (1856-1939): Médico tcheco/austríaco. Desenvolveu uma teoria que contraria a noção de sujeito defendida desde Descartes (um sujeito lógico-racional). Freud, seguindo a tradição materialista científica, informa que o sujeito pode ser incessantemente influenciado por impulsos inconscientes, cujas reais intenções estejam travestidas à nossa consciência, enganando-nos e manipulando nossos comportamentos. A sociedade cria regras e valores para tentar refrear esses impulsos e manter certo padrão de moralidade e sociabilidade. A maneira como a psique do indivíduo lida com esses impulsos (inconscientemente) determina o quanto o indivíduo será ou não acometido de algum distúrbio psíquico (inconsciente).

Jean-Paul Sartre (1905-1980): Filósofo francês. Existencialismo. Viveu nos períodos das 1ª e 2ª Guerras Mundiais. Criticou o determinismo decorrente das explicações materialistas até então professadas. Asseverou a liberdade humana, como conseqüência natural da consciência. Não permite qualquer isenção de culpa com base em circunstâncias ou elementos condicionantes. Retomou a noção de livre-arbítrio (instituto cuja existência até o momento não se encontra pacificada, acompanhando as descobertas decorrentes da evolução das mais modernas técnicas de verificação neurológicas).

Existencialismo: Como materialistas, acreditam que “a existência precede a essência”. Contudo, opõe-se àqueles que acreditam que há uma natureza que condiciona e determina o homem, e que impediria a ocorrência de modificações substanciais.

Para muitos, o embate entre Idealismo e Materialismo ainda não se encontra esgotado. Os que defendem o Idealismo, citam o potencial criativo do homem, capaz de antever uma realidade antes de pô-la em prática, transformando o mundo material a partir de idéias, bem como a busca por valores cada vez mais consensuais como paz, harmonia e bem-estar, o que pode demonstrar a existência de valores ideais comuns entre os homens, que não poderiam ser relativizados. Em favor do materialismo, contudo, temos que a grande maioria das pessoas enxerga o mundo com o olhar limitado de sua classe e posição social, reproduzindo a ideologia dominante sem a capacidade de reconhecer-se como ser alienado, incapaz de tomar decisões legitimamente autônomas e responsáveis.


Questões que surgem para o Direito:

Há um “algo mais” acima das normas humanas que deve orientar a formulação do Direito ou este deve ser totalmente resultado da livre estipulação humana, sem qualquer limitação moral absoluta preestabelecida?

O poder da maioria (garantia de que prevaleça sempre a vontade da maioria) pode ser limitado por sua própria legislação ou a maioria deve poder alterar a legislação quando entender conveniente?

Como seria possível existir uma regra contra a brutalidade da maioria, se a maioria puder fazer a lei conforme a sua vontade?

O Estado e o Direito são necessariamente meios de dominação ou podem ser usados para o bem comum? Quem determina o que é bem comum?

Qual a relação entre Direito, Ciência e Ideologia? É possível superar a alienação?

Reflexão sobre a questão da previdência e a dívida pública no Brasil (2003)

Muito se tem falado ultimamente sobre a questão da previdência no Brasil. Dados aparentemente divergentes apontam para, do lado do governo, uma previdência deficitária, e, do lado da oposição, uma seguridade social superavitária. É necessário um certo distanciamento para descobrirmos que ambos, a seu modo, estão falando a verdade. O que acontece é que falam de coisas um pouco diferentes.

Como sabemos, no Brasil a seguridade social abrange os conceitos de previdência, saúde e assistência social. E, conforme as fontes de custeio definidas no artigo 195 da Constituição Federal, incidentes sobre a folha de salários, lucro, receita ou faturamento das empresas, concurso de prognósticos, etc (COFINS, CSLL, PIS, CPMF, etc), a seguridade social encontra-se, de fato, em situação superavitária. Quando o governo fala em déficit, está concentrando atenção em uma parte específica da seguridade social, que é a previdência. E dizer que a previdência é deficitária significa dizer que o que é arrecadado hoje sobre a folha de salários, não paga os atuais benefícios previdenciários(1). Trata-se, assim, de uma simples relação entre arrecadação e gastos, onde o que se arrecada (uma alíquota sobre os salários) não é suficiente para pagar os benefícios concedidos, a menos que haja injeção de outros recursos pelo governo, provenientes das outras áreas da seguridade social. Assim, necessário diferenciar o fato de a seguridade social como um todo ser superavitária, enquanto a previdência sozinha não consegue se manter (déficit de 17 bilhões em 2002 - não incluídos, ao contrário do que muitos pregam, os benefícios assistenciais da Lei Orgânica da Assistência Social-LOAS). Ideal para as contas do governo, obviamente, é que assim não fosse, e que o que fosse arrecadado dos segurados fosse suficiente para o pagamento dos benefícios previdenciários. Quando falamos da previdência do setor público, mais grave ainda é a questão, pois a situação hoje é de que os 11% que são arrecadados sobre o salário dos servidores, juntamente com a contraprestação patronal do Estado, não são suficientes para o pagamento das aposentadorias integrais dos atuais servidores inativos. No caso dos estados, são 2,5 milhões de funcionários públicos contribuindo para um universo de 1,54 milhão de aposentados e pensionistas (a relação é de 1 inativo para cada 1,65 na ativa), e no caso da União, o número de inativos supera os da ativa(2), o que está provocando um déficit da ordem de 39,2 bilhões segundo o governo (dados de 2002), e que aumenta a cada ano que passa. A oposição apresenta um déficit diferente, mas reconhece que ele existe quando, por exemplo, o PSTU afirma em seu sítio na internet que a Seguridade Social apresentou em 2002 um superávit de 48 bilhões, mas que cairia para 22 bilhões se fossem incluídos os regimes da previdência dos servidores públicos e dos militares. Assim, fica claro que o sistema previdenciário do setor público do país também não consegue se manter sozinho.

A ORIGEM DO PROBLEMA

Segundo estudo do economista Raul Velloso, especialista em finanças públicas, grande parte deste problema, tanto no caso do INSS quanto dos servidores públicos, surgiu quando da promulgação da Constituição de 88, quando os constituintes criaram certo número de despesas (a maioria destas legítimas, como no caso da aposentadoria rural e do benefício assistencial) ansiando pela quitação da chamada dívida social. Houve ainda a questão dos servidores públicos que anteriormente à Constituição regiam-se pela CLT, e que passaram a ter direito à aposentadoria integral, sem necessariamente terem contribuído. “Com isso, a participação dos funcionários públicos nos gastos previdenciários quase triplicou” – afirma Velloso. E continua: “Em 1987, antes da promulgação da Constituição, 25% das despesas não financeiras do Orçamento federal eram destinados ao pagamento dos benefícios do INSS e dos inativos e pensionistas da União. Em 2001, essas transferências haviam saltado para 61% do total da despesa. No mesmo período, os gastos com custeio e investimentos, que correspondiam a 51% do Orçamento, caíram para 13%. Houve, portanto, uma drástica redução dos recursos destinados à manutenção dos serviços públicos e à expansão da infra-estrutura a cargo do Estado.”
Mas, como pudemos ver, nem sempre foi assim, e a previdência já foi superavitária, no início, quando havia um número razoável de pessoas contribuindo para que outras pudessem receber os benefícios. Contudo, hoje este número está desequilibrado. Há uma grande margem de trabalhadores na informalidade (em torno de 50%) e houve um enxugamento da máquina estatal que diminuiu o número de funcionários ativos, que tem que sustentar um número maior de inativos. Impossível que se esqueça ainda da sonegação bilionária.
A realidade é que vivemos em um Estado carente de recursos, e déficits financeiros não ajudam em nada a melhorar a situação. Mas, existem ainda os que dizem que, com exceção dos servidores públicos que saíram “privilegiados” na Constituição de 88, a grande maioria contribuiu para receber sua aposentadoria, e que feitas as contas, cada um só receberia o que contribuiu. Assim, o governo só estaria retornando valores que lhe foram anteriormente adiantados. Não haveria que se falar em déficit. Contudo, essa idéia se constrói sob o argumento de que o governo deveria deixar “separado” a quantia arrecadada do indivíduo, para depois usar dela para pagar sua aposentadoria. E desta forma, o dinheiro das épocas de superávit seria usado para cobrir épocas deficitárias. Mas sabemos que a coisa não funciona desta forma, e que o governo, devido sua atuação social, não pode deixar estes valores guardados, esperando o momento da aposentadoria dos contribuintes – haja vista o caráter universalista e solidário do regime de previdência pública. Isto só seria possível em uma instituição privada. Vivemos em um Estado carente de serviços sociais que não pode se dar ao luxo de ficar guardando dinheiro. Assim, o dinheiro das épocas de superávit foi gasto. Se o foi bem ou mal gasto, não será essa reflexão importante pra o deslinde desta exposição. Muito destes recursos deve ter sido usado no pagamento das dívidas públicas, e uma quantia enorme de dinheiro é usada ainda hoje para o pagamento ou amortização desta dívida.

AUMENTO DO DÉFICIT

Importante dizer também que a questão principal, a meu ver, não é a existência do déficit em si, uma vez que cabe ao Estado, na maneira que o legitimamos, atuar neste tipo de questão, de maneira que uma contribuição sua não seria menos que a obrigação de um Estado que se pretenda social. Preocupante, porém, é o aumento vertiginoso do déficit a cada ano que passa. Este aumento é que precisa ser controlado sob pena de uma corrosão financeira irremediável.

FALTA DE RECURSOS

Faltam recursos para todos os compromissos do governo. Então, bom seria que a previdência pudesse sustentar-se a si mesmo, ou, ao menos, que o déficit parasse de crescer. Dizer que a questão pode se tornar insustentável em um futuro próximo não é mero “alarmismo” ideológico.
É claro que questões sociais e de direito devem ser levadas em conta, não podendo restringir-nos unicamente à questão econômica. Os custos, principalmente sociais, devem ser ponderados. Mas não podemos achar que o aspecto econômico é menos relevante, pois nenhuma política social eficiente pode advir de uma economia deficiente. Assim, é necessário que achemos formas de contornar a situação financeira.

EM BUSCA DE SOLUÇÕES

Algumas soluções nos são apresentadas, de maneira geral, pelas pessoas e pela mídia, como a “Reforma da Previdência” apresentada pelo governo (criação de teto, redução de benefícios, aumento da idade para se aposentar, contribuição dos inativos), que ataca principalmente os direitos dos servidores públicos, na expectativa de aumentar receita e diminuir despesas.
Há ainda quem defenda como solução do problema, e acredito que isso deverá realmente ser buscado, principalmente no caso do INSS, o aumento da base de arrecadação, tirando-se gradualmente os trabalhadores da informalidade, e torcendo para que a situação se equilibre no futuro sem a necessidade de reformas (pois não adiantaria nada aumentar a base agora e jogar o problema do déficit para o futuro, quando esta geração que agora contribui estiver se aposentando).
No caso do serviço público, para aumentar a base de arrecadação, segundo Luiz Bicalho, diretor do Sindicato dos Servidores Públicos Federais, a solução passaria por contratar mais 1 milhão de funcionários, o que é, sem dúvida, necessário. Porém, esta medida parece um tanto quanto impraticável, tendo em vista a precária situação econômico-financeira do Estado, e o comprometimento dos já escassos recursos. É também o que pensa o especialista em finanças públicas Raul Velloso: ‘‘O governo está falido. Não há como aumentar o número de servidores’’.
Há ainda os que dizem que uma mera redução da taxa de juros do governo, para que diminuísse o valor da dívida pública, ajudaria a reduzir o rombo. Acontece que, no meio econômico, é praxe a expressão que afirma que “juros não se reduzem por decreto”, e que é necessário, por sua vez, que as circunstâncias econômicas sejam favoráveis à sua queda. Discussões à parte, o déficit da previdência continuaria a existir estruturalmente, independentemente da taxa de juros, que só influenciaria a questão indiretamente, ao incentivar o crescimento da economia e da arrecadação.
A redução do pagamento da dívida, principalmente a externa (que acabaria por aumentá-la ainda mais no longo prazo), ou mesmo a moratória da dívida, são medidas anunciadas por muitos, mas, de certa forma arriscadas, uma vez que afetariam nossas relações internacionais, o que poderia acabar jogando a economia em uma situação ainda mais difícil.
A cobrança dos sonegadores também é muito anunciada como solução para o problema da previdência, mas isto passa por uma questão maior do que simples vontade pessoal de alguns, mesmo no governo, e acabaria servindo apenas para dar uma folga nas contas, pois aliviaria o déficit apenas por alguns anos (lembremos sempre que déficit é uma questão de fluxo, não de cobrança de atrasados).
Outra forma ainda seria o cancelamento das isenções dadas a entidades pretensamente filantrópicas, que aliviaria, sim, um pouco as contas, mas não muito, uma vez que não se pretendam cancelar todas as isenções, apenas as que se considerarem fraudulentas.
Há ainda os que sugerem taxar os banqueiros, os grandes proprietários, ou outras medidas do tipo. Tudo muito significativo, mas aparentemente vago.

A QUESTÃO DA DÍVIDA PÚBLICA

Parece que a questão principal ainda passa pelo pagamento das dívidas do governo. Ora, o governo tem uma dívida externa de aproximadamente U$ 200 bilhões. Pagou em 2001, algo em torno de U$ 43 bilhões (sendo 27 bilhões do principal e 16 bilhões de juros)(3). Parece claro qual o destino de boa parte do superávit da Seguridade Social, apontado pela oposição. O procedimento acontece da seguinte forma. Os impostos e contribuições arrecadados (inclusive os para a seguridade social) entram nos cofres do governo como uma receita administrada, da qual são extraídas suas despesas, e repassado algum valor para a cobertura dos déficits da previdência. O que sobra desta conta, adicionando-se algumas outras receitas e subtraindo-se novamente as despesas, é o superávit utilizado pelo governo para o pagamento da dívida.
Assim, há duas posições possíveis: a de quem é a favor da manutenção dos contratos e acordos firmados com os credores internacionais, e a de quem é contra, e prega a diminuição do pagamento da dívida ou mesmo a moratória. Quem é a favor do pagamento deve se preocupar com o fato de que, somente em se tendo um superávit maior do que o valor que é pago periodicamente a título de juros e amortização da dívida, pode-se efetivamente manter-se a dívida controlada. Caso contrário ela aumenta. É claro que os custos que estamos dispostos a suportar para atingir isso devem ser ponderados, decorrentes de uma decisão política. Os que são contrários ao pagamento da dívida, por sua vez, podem justificar a opinião de não quererem reformas do tipo das apresentadas pelo governo, uma vez que pensam em utilizar o dinheiro que seria usado no pagamento da dívida para cobrir os déficits, ao menos por um tempo, e investir no crescimento do país. São os dois cenários que imagino possíveis. Um, esforçando-se para equilibrar as contas do governo, gastando-se menos (ou de maneira mais eficiente) e/ou arrecadando-se mais (ou de maneira mais eficiente), através das reformas, para que se possam cumprir os contratos, e o outro, que é o enfrentamento dos credores e a redução ou suspensão do pagamento da dívida. É preciso ter consciência de que ambos os cenários acarretarão, em maior ou menor medida, algum tipo de ônus ao país.

Fica a sugestão para que, aos que quiserem ajudar a resolver o problema, ajudem a encontrar alternativas, posicionando-se frente às soluções que são apresentadas, indicando outras porventura não mencionadas, e preocupando-se com que elas sejam objetivas e viáveis. E tenham sempre em mente que, para resolver problemas como este, é necessário muito mais do que boas intenções.


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1 Jornal da FENAJUFE, junho/03. Entrevista com Maria Lúcia Fattorelli, auditora fiscal e diretora do Unafisco, p.5
2 Correio Braziliense, 02/03/2003. O círculo vicioso da Previdência do Brasil, por Fernanda Nardelli.
3 A Tribuna de Santos, 24/06/01, por Marcelo Eduardo dos Santos

24 de agosto de 2009

DIREITO E JUSTIÇA

O que é Justiça?

(Reflexões e resumo didático para a disciplina de Sociologia Jurídica)

Tida por alguns como objetivo principal do Direito, ou sendo mesmo muitas vezes com ele confundido, o sentido de Justiça não é algo pacificado. Pode-se encontrar - como acontece com uma grande quantidade de idéias de caráter abstrato - concepções que variem de local para local e de época a época. Contudo, não seria arriscado imaginar que uma análise histórica pudesse oferecer subsídios para a formação de uma definição que indique ao menos a presença de certos valores comumente relacionados ao tema ao longo do tempo.

JUSTIÇA = RETRIBUIÇÃO

É de se imaginar, por exemplo, com certo grau de segurança, que a primeira noção de Justiça tivesse relação com as mais primárias manifestações dos desejos de vingança. Daí vem inclusive a expressão “fazer justiça com as próprias mãos”. Dessa forma, tem-se que as primitivas noções de justiça teriam sido norteadas pelo sentimento de RETRIBUIÇÃO. O desejo de retribuir comportamentos (para o bem ou para o mal) era parte do comportamento do homem primitivo, sendo em parte provavelmente alimentado pelos sangrentos conflitos vividos pelo homem no estado da natureza, o que fez com que a civilização percebesse, já então em seu nascimento (pois como diriam alguns, “ubi societas ibi jus” – “onde há sociedade há o direito”), o quanto era necessário estabelecer regras a respeito desse comportamento potencialmente desagregador.

JUSTIÇA = COMPENSAÇÃO/RETRIBUIÇÃO DEVIDA + HARMONIA

As instituições jurídicas primitivas baseavam-se na negociação, nos acordos e nos compromissos feitos oralmente entre as partes litigantes, em obediência a preceitos e valores da vida cotidiana de todos. O objetivo era evitar que as desavenças se alastrassem por todos os membros da comunidade, ou pior, que a morte de uma pessoa fosse vingada pela morte de outra pertencente à família do assassino e que, dentro da tribo, isso degenerasse na luta homicida de todos contra todos.
Podia-se contar com árbitros e juízes, escolhidos entre aqueles que eram considerados os mais sábios, normalmente os anciãos, ou mesmo mediante algum motivo de crença religiosa.
Em um segundo momento, quando da evolução das relações sociais, em especial com o advento da propriedade privada, passa a surgir, em complementação ao desejo de RETRIBUIÇÃO, o desejo de COMPENSAÇÃO, no sentido do dever de ressarcir prejuízos porventura causados.
Dessa forma, era a idéia de RETRIBUIÇÃO/COMPENSAÇÃO que impulsionava as primeiras buscas por Justiça, associado ao valor HARMONIA, que buscava então, dessa forma, restabelecer o equilíbrio e pacificar as relações da comunidade.
A cultura ocidental, por sua vez, tem na Bíblia a mais antiga fonte a respeito das noções de Justiça. E lá também podemos identificar claramente como princípio de justiça a RETRIBUIÇÃO, mas aí já como uma noção de RETRIBUIÇÃO “devida” (ou conforme a lei do talião: “olho por olho dente por dente” – o que quer dizer: nem mais, nem menos que o devido). Apesar de o discurso dos Evangelhos parecer mais tolerante no sentido de devermos evitar a busca por retribuições aos nossos devedores e inimigos (“ama o teu inimigo”!), incentivando dessa forma o perdão e incluindo um elemento mais pacificador (HARMONIA e um embrião do que viria a ser tratado como DIGNIDADE), o princípio da RETRIBUIÇÃO retorna com força nos textos relativos ao Juízo Final, com a punição dos “ímpios” e a premiação dos “justos”. Dessa forma, a idéia de RETRIBUÇÃO DEVIDA faz com que se tenha a noção de que ao mal causado corresponda uma penalidade equivalente.

JUSTIÇA = COMPENSAÇÃO/RETRIBUIÇÃO DEVIDA + HARMONIA + BEM COMUM + SABEDORIA/EQUIDADE

Com a noção de um mundo dividido entre o bem e o mal (sob influência do Judaísmo e do Zoroastrismo) a idéia de Justiça acaba por associar-se à idéia de BEM (ou seja, o “bem” que deve prevalecer sobre o “mal”, ou como o “certo” que deve prevalecer sobre o “errado”).
Na Grécia Antiga, a idéia de bem tem os contornos de BEM COMUM (certamente influenciado também pela busca da HARMONIA). Pregava-se o governo da sabedoria, aplicando-se o Direito por meio da EQUIDADE (a possibilidade de o Juiz aplicar a lei segundo sua melhor consciência e sabedoria, para não correr o risco de, ao aplicar a lei cegamente, cometer injustiças). A corrupção dos magistrados, no entanto, aliado ao declínio moral e material da civilização grega no final do período clássico, fez-se dar maior ênfase ao direito positivado, como uma forma de limitar o poder dos magistrados.

JUSTIÇA = COMPENSAÇÃO/RETRIBUIÇÃO DEVIDA + HARMONIA + BEM COMUM + SABEDORIA/EQUIDADE + ISONOMIA

Pela cultura greco-romana tivemos ainda o acréscimo do elemento ISONOMIA (igualdade entre as partes), fazendo com que a missão do Direito fosse trazer de volta o equilíbrio da balança (de rectum, ou seja, com o fiel da balança no meio), restabelecendo a HARMONIA e, consequentemente, alcançando a Justiça.
Na Idade Média, a noção de Justiça, propagada pela Igreja Católica, era similar à defendida pela Justiça bíblica, ou seja, dar aos outros o que lhes é devido (“dar a cada um o que é seu”) (RETRIBUIÇÃO/COMPENSAÇÃO). Mas ainda nesse tempo não existiam limites às práticas cruéis utilizadas como punição, que além de servir como apaziguadores do desejo de vingança, deviam servir como medida didática inibidora dos futuros atos criminosos.

JUSTIÇA = COMPENSAÇÃO/RETRIBUIÇÃO DEVIDA + HARMONIA + BEM COMUM + SABEDORIA/EQUIDADE + ISONOMIA + DIGNIDADE

Por fim, nas idades Modernas e Contemporânea a ideia de DIGNIDADE (entendida como a condição mínima a que se permite que um ser humano possa ser exposto) é incluída como elemento essencial à Justiça. DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA, que traz também em seu bojo a ideia de Justiça Social, buscando, dessa forma, readaptar o sentido da ISONOMIA, sempre de forma a manter a harmonia entre os valores defendidos.

Dessa forma, com base nos elementos até agora encontrados, poderíamos dizer que a Justiça seria um valor ou princípio que garantiria a proteção dos valores relativos a COMPENSAÇÃO/RETRIBUIÇÃO DEVIDA, HARMONIA, BEM COMUM, SABEDORIA/EQUIDADE, ISONOMIA e DIGNIDADE.

Contudo, é a partir do século XIX que ocorreriam mudanças mais significativas na interpretação desses conceitos.

SÉC XIX – 1801-1900

O século XIX viu o advento do poder político da burguesia, após pouco mais de 10 anos do início de uma revolução que marcou, com resultados bastante controversos, a virada de uma era (Revolução Francesa – 1789-1799 - marca o início da Idade Contemporânea).
Viu também a revolução técnico-científica empreendida pela burguesia, ávida por entender as leis da Natureza e o funcionamento do mundo, de forma a melhor tirar proveito dos acertos propiciados por estas técnicas.
A filosofia, influenciada por este novo paradigma, desenvolve métodos mais exatos de verificação da realidade. Surge o materialismo dialético, método científico de análise da realidade, que afirma que os valores subjetivos (bom, mal, certo, errado) são resultado da posição que o indivíduo ocupa na luta de classes, que são por sua vez condicionadas pela forma como a sociedade se organiza para produzir os bens e serviços necessários à manutenção do modo de viver desta sociedade.
Surge o Positivismo, de cunho mais conservador, e, voltado para o Direito, surge o Positivismo Jurídico (método científico que tem como objeto de estudo o Direito, tomado no sentido de norma jurídica), tendo como maior representante o jurista austríaco/americano Hans Kelsen (autor da Teoria Pura do Direito), que afirma que Justiça é o que decorre da aplicação da norma jurídica, deixando questões como legitimidade e outras análises valorativas para outras Ciências Sociais, direcionando a Ciência do Direito para o estudo da norma jurídica (assim considerando aquilo que foi positivado pelas instituições competentes à elaboração do Direito, em suas relações hierárquicas e temporais).
Por final, a tendência historicista do séc XIX relativizou as concepções outrora absolutas sobre Justiça, Direito, Ética, certo, errado, etc., em favor de uma análise menos inquisidora sobre os hábitos dos indivíduos de outras épocas, cuja concepção de certo e errado, segundo esse pensamento, estava condicionada pelas suas circunstâncias históricas.
Dessa forma, o conceito de Justiça, bem como dos valores e princípios a ele relacionados, passam a ser tomados como destituídos de qualquer significado intrínseco, passando a ser considerados como resultado do fenômeno social em que o indivíduo e sua comunidade estão inseridos.
Isso colabora de um lado a tese da positivação do Direito, no sentido da necessidade de deixar claro quais são os Direitos que regem as relações na comunidade, passando assim o Direito a ser um valor concreto, mensurável, e aceito democraticamente pela maioria dos membros da comunidade.
Contudo, sabemos que essa concepção só estaria devidamente legitimada em um regime verdadeiramente democrático, cujas leis derivassem de fato da vontade popular, e não como ocorre comumente, em que a produção do Direito Positivo é controlado por esquemas de manipulação das ferramentas capazes de criar uma falsa noção de legitimidade no ato de concessão de poder aos nossos representantes.
A positivação da idéia de Justiça

No séc. XX, após duas Guerras Mundiais, consideradas as mais sangrentas da história da humanidade, as nações decidem em âmbito supranacional positivar o valor Justiça, em texto de sua Declaração do pós-guerra:

Declaração Universal dos Direitos Humanos, 1948

"Considerando que o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e de seus direitos iguais e inalienáveis é o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo (...)
Toda pessoa tem direito, em plena igualdade, a uma audiência justa e pública por parte de um tribunal independente e imparcial, para decidir de seus direitos e deveres ou do fundamento de qualquer acusação criminal contra ele.
1. Toda pessoa tem direito ao trabalho, à livre escolha de emprego, a condições justas e favoráveis de trabalho e à proteção contra o desemprego.
2. Toda pessoa, sem qualquer distinção, tem direito a igual remuneração por igual trabalho.
3. Toda pessoa que trabalhe tem direito a uma remuneração justa e satisfatória, que lhe assegure, assim como à sua família, uma existência compatível com a dignidade humana, e a que se acrescentarão, se necessário, outros meios de proteção social."

O texto dessa Declaração, por sua vez fortemente inspirado na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, aprovada à época da Revolução Francesa, inspirou a elaboração de Constituições Nacionais, entre elas a Constituição Brasileira de 1988:

"Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL."
"Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:
I - construir uma sociedade livre, justa e solidária; (...)"
"Art. 5º - XXIV - a lei estabelecerá o procedimento para desapropriação por necessidade ou utilidade pública, ou por interesse social, mediante justa e prévia indenização em dinheiro, ressalvados os casos previstos nesta Constituição;"

A referência à EQUIDADE com vistas ao BEM COMUM pode ser encontrada também na nossa Lei de Introdução ao Código Civil:

"Art. 5º Na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum."

Dessa forma, as leis máximas orientadoras dos Estados modernos orientam-se pelo princípio da busca pela Justiça.
Contudo, o que se vê na prática parece não refletir as máximas pregadas pela lei.
Hoje em dia, em que predomina uma sensação de descrédito na Justiça oferecida pelo Estado, é comum que voltemos a ouvir falar sobre “fazer justiça com as próprias mãos”. O apoio a chacinas e a grupos de extermínio que atuam nos bairros mais pobres vem desse sentimento de vingança imediata, numa sociedade complexa “que já perdeu os rituais e as instituições das sociedades primitivas e que não conta com seus meios de controle social nem mesmo com seus meios informais de negociação.”
Assim, talvez nos reste admitir que a busca por Justiça não implique o estudo restrito do ordenamento jurídico, mas talvez de matérias mais atinentes ao ser humano, como filosofia, sociologia, psicologia, antropologia, etc.
E restaria assim ao operador do Direito a missão de dar ao vocábulo Justiça prescrito pela lei a devida interpretação na aplicação do Direito às demandas concretas da sociedade.

15 de março de 2009

A inoperância objetiva do discurso ético

“É fácil ser otimista, desconhecendo-se a realidade, apenas para que fiquemos em paz com nosso espírito. Ademais, conhecer a realidade é uma tarefa árdua, que pressupõe tempo e dedicação, o que é evitado pelas pessoas - que alegam outras prioridades -, por estarem plenamente satisfeitas pelo simples fato de serem otimistas.”

A inoperância objetiva do discurso ético (um ensaio)

É comum encontrarmos jovens “idealistas” (entre aspas por referir-se ao seu sentido comum, não-filosófico), que acreditam que a injustiça do mundo reside pura e simplesmente no fato de ele ser controlado por indivíduos com comportamentos antiéticos. Pretendem, assim, transformar o mundo através de reformas de caráter ético, ou ainda, através da tomada do poder, via meios legais, por pessoas com comportamento ético (e por tomada do poder consideram também a obtenção de cargos, preferencialmente de comando, no Executivo, Legislativo e Judiciário). Assim, segundo esses “idealistas”, bastaria que o poder estivesse nas mãos de pessoas éticas para que o mundo fosse um lugar bom de se viver. Equivocam-se, assim, a meu ver.

O discurso puramente ético é um discurso vazio, e quando não mal-intencionado, é, no mínimo, ingênuo. Antes de mais nada, a própria concepção do que viria a ser “ético” encontraria dificuldade de consenso, por tratar-se de conceito controverso, tanto quanto a definição precisa dos valores a que faz referência. Afinal, ética apresenta uma relação direta com os conceitos de “bom” e “certo” (bom ou certo para o indivíduo, para o grupo, para a sociedade, para o universo). Há aqueles que entendem que a ética não deve transcender os limites do grupo, aceitando que se tenham comportamentos que seriam por outros considerados antiéticos em relação aos que não pertencem ao seu grupo. Por exemplo, temos que um nacionalista pode considerar antiético prejudicar um cidadão de mesma nacionalidade, mas talvez não o ache prejudicar a um estrangeiro, cujos interesses estiverem, segundo seu juízo, em confronto com os de sua nação (e veja-se, como ilustração, como se dão as relações comerciais entre países vizinhos como Brasil, Argentina, Bolívia, Paraguai, etc.). Como outros exemplos dessa ética particular temos o que se chama comumente de ética dos presos, dos traficantes, da máfia, dos fundamentalistas religiosos, etc.

Contudo, ao longo dos tempos, a evolução das relações sociais tem ampliado o sentido daquilo que se considera protegido pela ética, de modo que é comum, atualmente, que seu alcance tenha passado a englobar a proteção de toda a raça humana. Há, no entanto, algumas tendências ainda mais atuais, porém minoritárias, que defendem uma ética universal, tentando englobar na definição de nossos comportamentos as conseqüências de nossos atos a todos os seres do universo[1]. E, assim, algumas correntes discutem se é antiética a experiência com animais (ao que muitos diriam que não, por acreditarem que essas experiências visam salvar indivíduos do grupo do qual fazem parte - qual seja, os seres humanos). Outros, porém, podem achar antiética a extinção de uma espécie, chegando a defender que se possa matar um homem para defender um animal pertencente a uma espécie em extinção. Outros achariam antiético matar um homem para defender um animal. E, da mesma forma, ainda hoje é possível que se encontrem os que limitem o senso ético ao seu grupo (família, clube, etnia, nação, etc.). De fato, é possível, inclusive, dizer que todos nós aplicamos um pouco este pensamento restritivo, ao defender os interesses de um familiar, amigo ou afim, contra os interesses de um estranho. E muito mais fácil seria fazê-lo quando esse estranho é considerado um inimigo.

A questão do certo e errado relacionada ao presente caso

Não pretenderei aqui estabelecer uma discussão a respeito da existência do certo e do errado, por entendê-la, além de demasiado polêmica, desnecessária ao fim ora proposto. Aqui, basta que se considere que cada indivíduo ou grupo pode ter concepções ou visões divergentes sobre o que é certo ou errado, posto que essa conclusão parece inegável. Da mesma forma como inevitável é o conflito de visões e interesses presentes neste fenômeno chamado sociedade. Dessa forma, a questão aqui proposta giraria em torno de saber quais as formas utilizadas para resolver esses conflitos de interesses e visões de mundo. Para isso, inicialmente, é necessário que se aborde a questão da natureza dessa contrariedade.

A natureza dos interesses contrários

O conflito de interesses é inerente à natureza - afinal a vida se alimenta de outra vida. Os animais se alimentam de plantas ou de outros animais, todos seres vivos. Dessa forma, não é errado pensar, por exemplo, que o interesse de um pessegueiro se contrapõe ao interesse da praga do pessegueiro - eis que, para sobreviver, esta última tem que atacar a planta (da mesma forma como o direito de existência do tamanduá com relação às formigas, ou do leão em relação à lebre, ou qualquer predador em relação ao seu jantar). E da mesma forma também com a existência do homem, que, por estar no topo da cadeia, prejudica a todos os demais, bem como a outros homens.

A questão da exploração

É sabido que desde o início da sociedade, a acumulação, necessária para o desenvolvimento desta, tal qual a conhecemos, só foi possível com base na expropriação e exploração. E com relação a isso, há basicamente três visões de mundo que merecem destaque (por representarem a visão da maioria da população).

Em primeiro lugar, há os que acreditam que a sociedade deve ser dividida de forma que os mais aptos dominem os menos aptos (afinal, esta é a lei que rege toda a natureza). Para estes, explorar um indivíduo considerado menos apto não pode ser considerada uma atitude antiética, por ser natural, pois, de fato, é assim que os seres vivos se relacionam.

Outros, ainda, concordando com a dominação, defendem que haveria um patamar mínimo de dignidade a que nem os menos aptos poderiam ser rebaixados, apesar de continuarem sendo dominados.

Uma terceira corrente, de menor força, defende que não deveria haver essa dominação.

Os primeiros são os liberais (em economia) e direitistas, os segundos os social-democratas e demais centro-esquerdistas, e os terceiros os de esquerda propriamente dita (ou o que muitos consideram extrema-esquerda) e os anarquistas.

Havendo conflitos de visões entre essas correntes, tenderão a prevalecer as concepções e vontades das classes e indivíduos que estão, no momento, no controle da sociedade (vontade esta que acabariam por chamar “senso de ética”, “justiça” e “bom senso”)[2].

Segundo alguns, foi para resolver esses conflitos históricos que chegamos ao sistema a que hoje chamamos democracia, que já existia de certa forma na Grécia antiga, só que restrita a poucos indivíduos. Hoje, ela estaria, em tese, disponível a qualquer cidadão, de qualquer classe. Assim, em um regime democrático, qualquer um teria a chance de defender seus interesses, desde que conseguisse arregimentar pessoas que com ele concordassem, e fazer-se inserir através de um representante eleito ou até mesmo diretamente, através de lei de iniciativa popular. Mas sabe-se que a prática é um pouco diferente.

A função do Estado

Sabe-se hoje que o Estado moderno foi a saída eficientemente encontrada pelas classes dominantes para que se estabelecesse certa condição de segurança (jurídica, policial, militar), de forma a proteger os cidadãos (normalmente os possuidores, como na Grécia Antiga) de quem quisesse atentar contra sua vida ou seu patrimônio. Afinal, havia naquela época (como há hoje), muitos proprietários e muitos desvalidos (e, como hoje, também estes mais que aqueles).

Assim, depois de assegurar a defesa contra possíveis invasões inimigas estrangeiras, era necessário se proteger contra as vontades dos desvalidos internos, que poderiam “reivindicar” à força uma certa redistribuição das riquezas nacionais. Mas e por que havia e ainda há estes desvalidos?, poder-se-ia perguntar. Ora, temos em primeiro lugar um problema de ordem física, eis que o patrimônio nacional (terras, riquezas, empreendimentos, etc) é limitado. E essa finitude material é prioritariamente apropriada pelos indivíduos e classes mais próximas dos centros de poder, que são as entidades responsáveis por regulamentar a distribuição e segurança deste patrimônio, dando legitimidade e garantindo “a cada um o que é seu”, ainda que por pura conseqüência histórica (heranças de todo tipo, e não por mérito pessoal). Para isso criou-se todo o aparato legal e administrativo, para defesa da ordem e do Direito, bem como as regras para sua manutenção. Criou-se também a maneira pela qual os indivíduos poderiam chegar ao poder para defender seus interesses: os partidos políticos; e criaram-se regras para a formação destes partidos. Uma das mais relevantes, a renúncia a ideais contrários às estruturas do Estado (ou seja, ideais revolucionários). Assim, todos os partidos que quiseram fazer parte do sistema tiveram que excluir de seus programas os ideais considerados antidemocráticos (luta de classes, abolição da propriedade, luta contra o capitalismo, etc – que eram comuns nos primeiros partidos de esquerda). Além disso, regras não explícitas foram se revelando, como a necessidade preeminente de acesso aos meios de comunicação (TV, jornais, revistas, rádio, etc.), pois, para serem votados, precisavam aparecer para os eleitores. No entanto, os meios de comunicação, como é sabido, apesar de concessões do Estado, são administrados por empresas privadas que, como todo empreendimento capitalista, têm interesses financeiros (uma vez que visam ao lucro). Assim, para ter acesso aos meios de comunicação (ou, até mesmo, para ganhar o direito de não ser prejudicado por eles), é necessário que se disponha de recursos financeiros, na correspondência direta da quantidade de votos que se quer arregimentar (salvo raras exceções – e que só fazem confirmar a regra -, de candidatos eleitos com baixos orçamentos de campanha). E como grandes fontes de recursos estão concentrados em poucas mãos, para se ganhar uma eleição, via de regra, é necessário um certo alinhamento com as pessoas que disponibilizam os meios que tornam possível vencer essa eleição. A título de exemplo, é de se lembrar da campanha presidencial de 1989, em que o então candidato Luis Inácio Lula da Silva foi demonizado pelos meios de comunicação, perdendo a eleição para aquele que defendia os interesses das classes dominantes. Anos depois, para conseguir vencer as eleições no Brasil, o então candidato Luis Inácio da Silva teve que remodelar seu projeto, para se tornar mais palatável às classes dominantes, e, depois de efetuados os devidos ajustes e alianças conservadoras, chegou ao poder, dando ainda maior legitimidade (ainda que de forma ilusória) ao sistema democrático criado por estas mesmas classes dominantes. Coisa rara, no entanto, tem acontecido em alguns de nossos países vizinhos, onde candidatos contrários aos interesses das elites e dos meios de comunicação venceram eleições para o comando do país. Uma possível especulação para isso é de que, tendo em vista o acirramento das contradições, de forma que a “anestesia” proporcionada pelos dominadores passe a não fazer todo o efeito necessário, um conjunto de circunstâncias tornaria possível a mobilização popular, diretamente ou em torno de um candidato saído de seu meio, e através das mesmas regras criadas pelas classes dominantes[3] (como usando o feitiço contra o feiticeiro), conseguem colocá-lo no poder. Sim, esses países são uma exceção interessante a ser analisada no devido tempo. Por ora, para confirmar a regra, basta ver como são tratados pela mídia internacional - pertencente às classes abastadas.

Democracia

Sabe-se que no regime democrático os poderes do chefe do executivo são limitados e sujeitos ao controle do parlamento (assim o é desde a Carta Magna do séc. XIII). Mas quem compõe o parlamento? Em teoria, seriam os representantes do povo. Na prática, porém, conforme já exposto, precisam ser os alinhados com os donos dos meios de produção (capitalistas e proprietários de todo tipo) ou do setor de investimentos financeiros (não-produtivos), que são os que possuem recursos para financiar suas campanhas (não esquecendo, como sempre, das pequenas exceções - mas que só fazem confirmar a regra). Assim, há que se lembrar que, ainda que saído do seio das classes oprimidas, o chefe do executivo, para fazer maioria e conseguir governar em nosso regime, tem que fazer concessões aos representantes de todas as classes ali representadas, incluindo empresários, banqueiros, latifundiários, grileiros, etc., cujos interesses estão mais quantitativamente representados no parlamento do que os das classes menos favorecidas economicamente. E isso é o que se tem a dizer no momento sobre o que se convencionou chamar democracia.

De volta à questão ética

Uma pesquisa realizada entre a população, incluídos assim representantes de todas as classes sociais, revelaria que a imensa maioria é favorável à defesa do princípio da dignidade da pessoa humana (no sentido de assegurar um patamar mínimo de condição de vida, abaixo do quê seria considerada uma existência subumana e, portanto, inadmissível). De fato, em termos abstratos, a imensa maioria é favorável a isso. Inclusive consta como um dos fundamentos da República brasileira e, além disso, da Declaração Universal dos Direitos do Homem (documento este que, de certa forma, vinculou a legislação de todos os países ocidentais). Inadmissível, assim, também, no âmbito das entidades supranacionais de Direitos Humanos, inclusive pertencentes à Organização das Nações Unidas, que se passe por cima deste princípio. Mas então, por que na prática é diferente, havendo diversas pessoas em diversos desses países vivendo em condições subumanas?

Ora, simplesmente porque, conforme o que já foi apresentado, há diversas visões sobre a maneira de se convalidar esse princípio na prática. Sem contar aqueles que defendem o direito à dignidade da pessoa humana a apenas certos grupos. Como exemplo, tem-se que pouca gente se espantaria ao ver desrespeitados os direitos humanos de um estuprador e assassino, encontrando-se este encarcerado em condições desumanas, sob o argumento de que ele tampouco respeita os direitos humanos dos outros. Há ainda os que imputam aos que vivem em condições de profunda indignidade humana a culpa por sua própria mazela, alegando que se encontram nessa situação porque não se esforçam, são preguiçosos, ou porque não querem estudar ou trabalhar, preferindo a vadiagem e a criminalidade, não se dando a si mesmos o direito à dignidade. Outros, mais intolerantes, deixariam de conceder esse direito a outras minorias, como homossexuais, travestis, negros, ou qualquer coisa que possa ser considerado indesejado por ser diferente ou por causar estranheza. É de fundamental importância que se saiba que pessoas com tal pensamento também compõem a sociedade e, no sistema democrático, têm direito de votar e ser votadas, e de ter seus interesses representados no Legislativo, Executivo e Judiciário, apesar de algumas de suas atitudes, quando escancaradas, poderem ser consideradas crimes pela legislação. No entanto, a maioria das pessoas sabe ser suficientemente discreta para não assumir seus preconceitos abertamente - quando mais por se tratarem de agentes políticos que dependem de votos populares para alcançarem ou se manterem em seus cargos -, apesar de fazê-los valer na prática, de forma disfarçada.

Ainda, acerca da efetividade do princípio da dignidade da pessoa humana, é importante falar de duas grandes visões que atualmente polarizam a discussão: os “intervencionistas” e os “liberais” (esses últimos tomados no seu sentido econômico). Segundo os “intervencionistas”, caberia ao Estado o papel de garantir o direito de dignidade aos cidadãos, mediante sua ferramenta mais comum, que é a redistribuição de renda e a disponibilização de serviços públicos, mediante a cobrança de impostos. Os “liberais”, por sua vez, normalmente pertencentes às classes mais altas, pregam que a intervenção do Estado deve ser extremamente limitada, não interferindo nas relações entre proprietários e não-proprietários, pois estas seriam auto-reguláveis, caminhando, ao final, para o equilíbrio e a paz social. A intervenção por parte do Estado, segundo esses, prejudica a economia e é responsável pelas mazelas por que passa a população. Há, contudo, correntes intermediárias (mas não menos relevantes), como a dos que defendem a intervenção do Estado em favor dos empresários e instituições financeiras, pois estes seriam as molas propulsoras do progresso e do desenvolvimento econômico, garantindo as condições necessárias para eliminar as mazelas da população, através da criação de empregos e do desenvolvimento. Pode-se inclusive dizer que, na prática, tem sido esta última a concepção dominante no mundo político, eis que, historicamente, os grandes proprietários utilizaram-se do Estado para seus proveitos particulares (não raras vezes sob a justificativa de um pretenso interesse social).

Assim, essas correntes, devidamente representadas no parlamento e na vida política da sociedade, apesar de, em tese, poderem concordar entre si acerca da necessidade de se defender o princípio da dignidade da pessoa humana (ainda que cada um a seu modo), divergem radicalmente sobre a maneira como fazê-lo. Dessa forma, pode acontecer de todos concordarem com o “fim” proposto, porém, na prática, negarem cada alternativa proposta que entendam restringir alguma de suas vantagens conquistadas legitimamente dentro do Estado de Direito. Ora, e uma vez que é impossível que se resolvam os problemas sociais sem que se atinjam algumas vantagens das classes dominantes, e considerando ainda que se ninguém consentir em abrir mão de algo, o Estado pode ficar de mãos atadas, a indignidade se perpetua. Normalmente, em seu discurso, os opositores às propostas distribucionistas alegam que há outras formas de resolver a situação, além das apresentadas, para que não precisem renunciar a seus “direitos”, o que converge ao final para que o Estado, ao precisar de recursos, tenha que “cortar de sua própria carne”, ainda que em detrimento dos serviços públicos, dos servidores que os prestam, ou dos direitos sociais[4]. Não é à toa a onda de retirada de direitos dos trabalhadores em geral, partes mais fracas na negociação, na divisão dos ônus na busca pela solução dos problemas do país. E, dessa forma, vão prevalecendo as estratégias defendidas pelas classes dominantes, por estarem mais devidamente representadas no poder.

A defesa dos interesses

Mas, perguntaríamos então: seria antiético defender seus interesses? E a resposta obrigatoriamente alertaria: segundo quem defende esses interesses, obviamente que não. Mas a questão que aqui se quer demonstrar é a de que dizer que isso ou aquilo é antiético não resolve, de fato, qualquer problema (afinal, sendo impossível uma operação mental que mude a opinião das pessoas, continuará prevalecendo a opinião de quem tiver mais força política para defendê-la).

A força política
Tenho que as relações do mundo são guiadas eminentemente pela política, sendo a legislação apenas um reflexo, muitas vezes não muito fiel, dessa realidade. Havendo confronto de interesses, as forças em choque são medidas, custos e benefícios de um possível confronto são avaliados, e após um certo grau de confiabilidade nas informações, a decisão é tomada. E, como já dito, isso funciona apesar da ordem legal. Afinal, ao decidirmos se devemos ou não seguir uma regra, ponderamos sobre o custo provocado pela restrição do nosso direito ao segui-la, bem como por não segui-la (p. ex.: se eu seguir a regra de velocidade máxima não poderei correr tanto quanto eu gostaria ou precisaria, mas se eu não segui-la há a chance de ser condenado a ter reduzido meu patrimônio via pagamento de multa; da mesma forma com o sonegador de imposto, beber e dirigir, etc). E assim também temos o ladrão, que age impelido pelo custo da necessidade ou desejo, medido contra o custo de uma possível punição (ainda que de forma não muito bem elaborada) ou, como também é comum (porém cada vez menos), substituindo o medo da punição por certos valores morais.

Mas o que se quer aqui dizer por força política? Ora, se procurarmos nos afastar das concepções culturais e ideológicas que moldaram o sentido da expressão, poderíamos chegar à conclusão de que é simplesmente a força de fazer valer sua vontade (pacificamente ou violentamente[5]), e ainda que sujeito a possível sanção ou retaliação. Nessa visão, é possível dizer que, apesar da existência das leis, o mundo permanece sendo regulado pela lei natural primordial, qual seja, a lei do mais forte. Exemplo comum é o dos grupos criminosos, que conseguem sobreviver desde que montem um esquema eficiente de resistência (muitas vezes com a conivência do próprio Estado). E assim também com as relações sociais. A lei é promulgada, mas pode não ser cumprida (como não o é, muitas vezes, sequer pelo Estado que a promulgou). Elas podem funcionar, no entanto, desde que sirvam ao interesse de quem tenha força política de fazer valê-las, ou, ainda, de quem tenha sorte de ter acatada sua pretensão pelos Tribunais. A própria interpretação da lei para a aplicação ao caso concreto, em um julgamento, é feita de acordo com o entendimento do magistrado sobre o que ele considera certo ou errado, resultando disso que juízes diferentes podem proferir decisões até mesmo contrárias para casos idênticos (revelando assim o caráter eminentemente ideológico - e, por isso, político - da decisão judicial).

Das possibilidades de resolução dos conflitos

Há basicamente duas formas de solução dos conflitos: o consenso e a imposição. Imaginemos, a título de exemplo, que lobos e cordeiros se reunissem para deliberar sobre a melhor forma de solução de suas controvérsias. Ora, o direito de sobrevivência dos lobos é naturalmente contrário ao direito de sobrevivência dos cordeiros. Sendo assim, qualquer decisão final seria de um consenso impossível, pois os lobos não poderiam abrir mão do direito de abater ao menos alguns cordeiros (eis que é isso que lhes garante a existência). Da mesma maneira o capitalismo, que tem mazelas inerentes a sua existência, dentre as quais o desemprego. Por outro lado, regimes comunistas tentavam garantir o pleno emprego aos seus cidadãos, sendo que, por razões diversas que não vêm ao caso no momento (por complexas e desnecessárias ao que aqui se pretende demonstrar), acabaram se mostrando ineficientes do ponto de vista econômico e, conseqüentemente, de certa forma, também do ponto de vista social, pois, hoje, é aparentemente impensável um Estado eficiente socialmente que não o seja economicamente, ainda que unicamente para que tenha recursos para garantir a qualidade de suas prestações sociais.

Quando os interesses são irremediavelmente contrários, vence quem tiver maior força política

Assim, considerando a complexidade de fatores que condicionam as estruturas de poder - construídas para adaptar-se aos interesses das classes que a construíram -, se quisermos realmente mudanças, parece óbvio que devamos agir por fora dessas estruturas. E é por esse motivo que a discussão sobre o certo e o errado não faz sentido aqui. O que se deve discutir, no entanto, é como esse certo e errado deve prevalecer sobre o certo e errado do outro, quando inexistir, porque inerente à natureza do problema, a possibilidade de consenso. E é exatamente isso que alguns “idealistas” e otimistas esquecem de inserir em seus discursos.

A esperança como mercadoria
A idéia de esperança que os jovens otimistas depositam no sistema é, de fato, muito útil à manutenção do próprio sistema. Manipulada por políticos mal-intencionados, essa esperança é passada adiante, para que infinitas tentativas sejam feitas a cada nova eleição. E sem mudanças significativas, mas com reformas pontuais - que não firam os interesses das classes dominantes -, o sistema é legitimado.

Assim, é importante que se tenha em mente que não basta a mera esperança otimista ou as boas intenções, que tanto alimentam os jovens. De fato, não podemos ter a ilusão de que o otimismo é capaz de mudar o mundo. Pelo contrário, faz-se necessário que sejamos radicalmente realistas, para que, conhecendo profundamente a sociedade na qual se vive, bem como as estruturas de poder (por mais que isso nos impressione de forma negativa ou que se acabe por ter consciência da dificuldade de mudança), estabelecer estratégias eficientes de resistência, que não sejam enfim meros engodos justificados em discursos abstratos, sem objetividade, que mais ajudam a perpetuar do que combater as formas de injustiça social.


Paulo Alcir Cardoso Brocca Junior, 07/06/2008


[1] Os menos “radicais” já conseguiram impor leis de defesa dos direitos dos grandes primatas, como gorilas e chimpanzés, enquanto outros defendem os direitos de todos os animais, e outros ainda gostariam de ver garantidos os direitos das plantas, rios, seres vivos, universo...

[2] Historicamente no mundo ocidental tem havido a predominância da primeira corrente (direitistas e liberais), alternando-se com pequenas participações da segunda corrente (social-democratas).

[3] Para dar legitimidade ao Estado que se criava, a burguesia, agora no poder, inseria na legislação princípios de caráter liberal e humanitário (igualdade legal, dignidade da pessoa humana, devido processo, etc), que tinham basicamente a função de garantir os seus próprios direitos (e os de sua classe) frente aos governantes e às outras classes. No entanto, as classes mais baixas, aos poucos foram conquistando alguns desses direitos, cedidos pelas classes dominantes quando se sentiam perigosamente pressionados, fazendo uso dessa “ampliação” de direito com intuito de dar uma maior legitimidade ao poder que exerciam (permanecendo, assim, no poder). Na maior parte das vezes, a sociedade civil consegue, no máximo, realizar pressão para que o governo realize certas reformas, demasiado tímidas, via de regra, mas que parecem sinalizar boa vontade das classes governantes para com a sociedade, dando assim maior legitimidade à classe no poder – veja, por exemplo, a defesa do consumidor, leis trabalhistas, leis dos crimes hediondos, etc.

[4] É para isso, inclusive, que discursam e apontam estratégias na época das eleições. Discursos do tipo “se o governo atual não consegue fazer, vote em nós, que saberemos fazer” são o discurso comum de qualquer oposição.

[5] Veja-se, por exemplo, todas as ingerências militares ou econômicas de Estados contra outros Estados e de classes sobre outras classes.

REFLEXÕES E DIVAGAÇÕES - A morte do artista

"Quem matou o artista? Há assim várias hipóteses. E também vários suspeitos. Foi o martelo do operário? Ou foi apenas um acidente de trabalho? Foi a caneta do burocrata? Ou se intoxicou com a tinta dos carimbos? Ou foi o giz da sala de aula? Foi uma bala perdida? Ou ela era direcionada? Ou talvez tenha morrido de fome, para aumentar os lucros dos investidores?


O artista morreu, mas se recusa a ser enterrado
Levanta-se do caixão e corre desatinado
Nu pelos campos
Causando espanto entre as velhas senhoras da sociedade
As pessoas se espantam e gritam
E os senhores engravatados se reúnem:
O artista só faz perturbar a ordem!
E isso não é bom para os negócios
Quem vai conseguir enterrar o artista
e conseguir enfim estabelecer a ordem no mundo?

O artista tem o peito aberto
Por onde escorrem-lhe as entranhas
É agora um zumbi, um verme, um corvo
Transformando o podre em nova vida
E produz mau cheiro
Chafurda a morte
Tem um vômito ácido
Mas toma um Sonrisal® e segue em frente


Já não tem fígado ou pulmão
E o coração está em pedaços
E ainda assim, de suas tripas espalhadas,
Constrói sua obra-prima"

(Paulo A.C.B.Jr)