15 de agosto de 2012

REFLEXÕES

Trata-se de uma seção do projeto REFLEXÕES E DIVAGAÇÕES.
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11 de agosto de 2012

Colisões entre direitos fundamentais e a legitimidade democrática da jurisdição constitucional

          A polêmica acerca da legitimidade democrática do Poder Judiciário em resolver questões de ordem constitucional remonta a pelo menos os anos 20 do século passado, sendo devidamente ilustrado no embate entre os pensadores Hans Kelsen e Carl Schmitt, em que o primeiro defendia que o controle de Constitucionalidade fosse realizado por meio de uma Corte Constitucional, com especial papel na tomada de posições contra-majoritárias, e o segundo defendia que esse controle só poderia ser feito por quem estivesse a cargo de um poder obtido com base em critérios eleitorais majoritários garantidores da soberania popular. O fato de a composição do Judiciário não ser resultante da vontade direta da população, como o são o Executivo e o Legislativo, pode invocar certa insegurança sobre seu poder de decisão acerca de matérias consideradas eminentemente políticas, como são as que dizem respeito à interpretação dos dispositivos constantes na Constituição (lei maior de uma nação). Contudo, atualmente, sedimentou-se o entendimento de que o Poder Judiciário teria legitimidade para dirimir colisões entre direitos fundamentais, ao que se poderia atualmente argumentar que esta legitimidade derivaria da própria Constituição e, assim, não seria carecedora de uma atuação dentro das autorizações democraticamente estabelecidas. No mesmo sentido, além de ter suas atribuições previstas constitucionalmente (ou seja, nos termos definidos em uma Constituição formulada mediante processo democrático garantidor da participação popular), teríamos ainda que a escolha dos componentes da Suprema Corte se dá a partir de indicação do Presidente da República (representante da população eleito pela regra majoritária), e, ainda, mediante sabatina dos membros do Senado Federal (representantes dos Estados Federados também eleitos por regras majoritárias), o que aumenta significativamente a legitimidade da Corte Constitucional no tocante aos critérios democráticos de sua composição. Dessa forma, poder-se-ia mesmo dizer que haveria, ainda que indiretamente, a participação popular na composição dos membros da Corte Constitucional de uma nação. Na prática, contudo, não é isenta de críticas a atuação do Poder Judiciário quando decide questões que envolvam certos valores não consensuais entre a população e mesmo entre a comunidade política. Afinal, a defesa de certos princípios de Direito em determinado caso concreto pode entrar em choque com a vontade circunstancial da maioria da população (o que encarnaria o papel contra-majoritário defendido por Kelsen). Como garantia de que referidos princípios fossem respeitados independentes das circunstâncias políticas, Tribunais Constitucionais assumiram o papel de julgamento de certos atos e de interpretação de certas normas, segundo princípios constitucionais, na defesa de direitos e de princípios orientadores do regime democrático, ainda que contrariados ou acobertados pelo manto de maiorias políticas circunstanciais. Assim, a partir da universalização dos direitos fundamentais, constante na Constituição (que não condiciona em seu texto a aplicabilidade desse direitos a posteriores arranjos majoritários, mas obriga desde logo que sua aplicação se dê em relação a todos os seres humanos, sem exceção), caberia à Corte Constitucional a defesa desses direitos, em cumprimento ao que dispõe a Constituição, e ao próprio papel atribuído à Corte pela lei maior da nação. Nesse sentido, caberia ao Poder Judiciário a garantia de certos princípios e direitos fundamentais, ainda que não respaldados pela vontade majoritária da população, e muitas vezes contrariando decisões dos próprios Poder Legislativo e Executivo. Mas, ao mesmo tempo, é essa independência frente aos demais poderes que torna possível que sejam respeitados certos direitos de minorias e a própria garantia do processo democrático, possibilitando certa proteção desvinculada da oscilação inerente à política e à construção de maiorias, o que se tornou relevante após a realidade dos regimes autoritários que marcaram a história do século XX, em especial aqueles experimentados na Europa no período entre guerras. Obviamente que um exagero no que se passou a chamar de “ativismo judicial” vai suscitar críticas, como as que mencionam o risco de esvaziamento das esferas políticas tradicionais, estas sim legitimadas diretamente pelo voto. Por outro lado, muitos veriam nessa atuação a defesa exatamente dos pressupostos garantidores do regime democrático, garantido pela Constituição, na medida em que recolocaria no cenário político minorias que, de outro modo, estariam alijadas dos direitos fundamentais necessários à consolidação do sistema democrático (que é atualmente, no aspecto jurídico, elemento norteador da política e do direito). Em que pese o caráter eminentemente político das relações entre os Poderes do Estado, e a necessária fixação de limites de atuação entre eles, haveria ainda mecanismos favorecedores ao estabelecimento de limites à atuação do Judiciário, que seriam inerentes à própria natureza da separação dos poderes, com seus freios e contrapesos. Não obstante, dentro das esferas de atuação constitucionalmente estabelecidas, competiria também ao próprio Judiciário o estabelecimento de mecanismo de atuação legítima e de autocontenção, que aos poucos se consolidariam, para que sua atuação não fugisse às atribuições democraticamente estabelecidas pela Constituição, e, no mesmo sentido, diminuindo a margem de discricionariedade das decisões judiciais (teríamos como exemplos de mecanismos o aumento da necessidade de motivação das decisões, a legitimidade de atuação para a garantia de direitos a minorias discriminadas e aqueles relacionados aos pressupostos de funcionamento do sistema democrático, a autocontenção em questões de natureza técnica extrajurídica e ponderações relativas ao grau de participação popular na formação do ato questionado, etc.). Por fim, ter-se-ia que, a partir do deslocamento do Direito para além das convenções humanas circunstanciais e a universalização dos direitos fundamentais (o que se dá, por exemplo, no caso dos direitos reconhecidos internacionalmente via declarações de Direito como a Declaração Universal dos Direitos Humanos, etc), os Tribunais Constitucionais assumem o papel de garantidores da eficácia desses direitos, dentro das autorizações legitimamente estabelecidas na Constituição, na defesa dos princípios garantidores do sistema democrático e dos direitos fundamentais, mesmo que contrariados pelo advento de certas maiorias políticas.






Laicismo estatal e crucifixos nos órgãos públicos



Após várias décadas de um laicismo formal declarado pela maior parte dos países do Ocidente (ainda que em diferentes épocas e aprofundamentos – na França desde a Revolução Francesa enquanto na Argentina havia a exigência de um presidente católico até os anos 90), um movimento laicista novo, de militância mais incisiva, tem ganhado espaço nos debates públicos nos últimos anos. Aparentemente duas circunstâncias principais parecem ter alimentado essa nova discussão: na Europa, uma direita com pretensões mais ou menos liberais (mas que ocultariam uma certa tendência islamofóbica), e, na América Latina, grupos de centro-esquerda de formação marxista, agora no governo, apoiados por movimentos historicamente escorraçados pela tradição religiosa (feministas, pró-aborto, homossexuais, etc.).

Lembremos que há alguns anos veio à tona a discussão sobre a proibição do uso do véu islâmico nas escolas francesas (na verdade a medida diz respeito às vestimentas religiosas de todas as confissões, mas é notório que o alvo principal seria a população islâmica), medida essa em relação a qual me manifestei contrariamente, sob o argumento de que o Estado deve ser laico, mas a população que utiliza seus serviços não.

A situação para o caso dos crucifixos em órgãos públicos parece seguir lógica semelhante, tendo em vista a laicidade do Estado, não obstante o fato de que, caso houvesse algum estudo que apontasse que a permanência dos crucifixos garantisse maior “justiça” nos julgamentos e atos administrativos, este poderia ser um argumento irresistível a seu favor. Contudo, é sabido que certas tradições têm mais utilidade na aparência de moralidade (e manutenção de uma certa "ordem") do que garantir propriamente a moralidade. Por outro lado, é de se levar em conta que a retirada do crucifixo também não significaria diretamente qualquer garantia de mudança ideológica dos magistrados, assumindo a própria retirada, ao menos em um primeiro momento, um caráter mais simbólico do que prático. Não obstante, argumentos a favor da manutenção dos crucifixos poderiam levar em conta uma possível manutenção da paz social (havendo risco de certa insurgência popular diante de uma atitude que pode não ser muito bem compreendida), a própria vontade popular, tomada em um sentido democrático plebiscitário (vontade da maioria), e mesmo a manutenção de uma tradição histórico-cultural, considerada como patrimônio cultural a ser protegido pelo Estado (esta última tem merecido maior destaque na argumentação jurídica favorável à manutenção). Inevitável, contudo, não associar o peso do símbolo cristão, por exemplo, diante de uma possível decisão a favor do aborto, ou no interesse dos grupos alijados pelo poder religioso. Para estes, o símbolo poderia representar uma antecipada tomada de posição por parte do Estado, o que implicaria certa parcialidade diante de questões que possam vir a contrariar determinada moral religiosa. E essa “antecipação de posição”, mormente por vincular-se a valores explicitamente não-leigos, contrariaria a isenção estatal almejada pela cultura liberal e laica na qual se baseou nossos ideais jurídicos republicanos.

Em relação à decisão do Conselho Nacional de Justiça a respeito da possibilidade de manutenção dos crucifixos, creio que a defesa do princípio federalista pode de fato implicar uma certa autonomia das instituições estaduais em relação a estas questões (nos termos de suas próprias instituições democráticas). Afinal, o CNJ se posicionou no sentido de que a manutenção do crucifixo não fere a Constituição Federal, não excluindo a priori aos Estados da Federação a análise de suas situações particulares (como foi inclusive o caso do Acre ao não inserir qualquer expressão religiosa no preâmbulo de sua Constituição Estadual).

Por fim, importante que tenhamos em conta que questões como essa, por mais que possam parecer frutos de mentes atéias "intolerantes", deveriam servir para fomentar debates também sobre outras questões relevantes, como o porquê de seguir certa tradição (que nem sequer conhecemos direito a origem e a história), simplesmente porque "sempre foi assim". Não podemos esquecer, ainda, que todo símbolo carrega consigo uma carga ideológica que extrapola na maior parte das vezes seu sentido original, e que serve para incentivar que se mantenha intocada uma certa ordem das coisas. Veja-se, por exemplo, como o Cristianismo manteve sua carga de dominação mesmo após a queda do Império Romano (que se tornou cristão a partir do século IV), servindo, de certa forma, como um meio de continuação daquele Império. Historicamente temos exemplos de que um símbolo pode não ser tão inocente como querem alguns, principalmente quando é ostentado pelos dominadores, e utilizados mais pra dominar do que para libertar.


O "núcleo duro" da Constituição


Imediatamente após o seu preâmbulo, a Constituição brasileira oferece a seus leitores aquilo que é considerado por muitos como seu “Núcleo Duro”, devidamente registrado no caput do seu primeiro artigo: “Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: (...).” Assim, antes mesmo de indicar os fundamentos da República, a Constituição já trata de declarar os princípios que estruturam o Estado brasileiro, materializando-o juridicamente como uma República, Federativa, e como Estado Democrático de Direito. Mas, afinal, o que isso significa?

Como República, pretende a Constituição garantir o aspecto público do Estado, e das coisas que lhe tocam (coisa pública), em nítida separação com os bens e interesses dos particulares. Ou seja, o Estado, sendo público, deve agir no interesse público, mediante responsabilidade dos agentes estatais, prestando satisfação de seus atos, e não se guiando por interesses particulares de quem quer que dele possa tentar se apropriar em prejuízo do interesse coletivo. Acabam se relacionando a referido princípio a forma como a sociedade delega os poderes aos seus agentes públicos (via de regra por eleições para mandatos temporários ou por concurso), a divisão de poderes e competências e o obedecimento à lei.

Como Federação, o Estado, ao dividir-se em porções administrativas menores, dotadas de autonomia para buscar seus interesses e regular-se conforme a vontade de seus habitantes (ainda que nos limites dados pela Constituição Federal - visando ao equilíbrio e proteção dos interesses do Estado como um todo), almeja a uma maior facilidade na administração das diversidades regionais, a desconcentração do poder político e a aproximação entre governantes e governados.

Como Estado Democrático de Direito, a Constituição estabelece a forma como as relações entre os indivíduos e o Estado se efetivarão: através da lei (tomada aqui em sentido amplo), elaborada com anuência da população (segundo a regra da maioria), que a estabelece direta ou indiretamente (via representantes). Especialmente controversa é a questão do significado da “democracia”, sendo comum nos países ocidentais sua equiparação à chamada “democracia liberal”, que além de guiar-se pelo critério da maioria, busca preservar certos direitos fundamentais mesmo contra uma possível vontade da maioria (direitos essencialmente ligados á idéia de liberdade – de pensamento, de organização, de imprensa, etc), e, nesse sentido, dedicando especial atenção às garantias das minorias.

Referidos princípios são considerados o Núcleo duro por serem os elementos que constituem a própria estrutura do Estado, e é por meio dessa estrutura que será possível garantir todos os outros direitos estabelecidos na Constituição. Juridicamente imutáveis (senão por meio de uma nova Constituição), são como uma espécie de materialização de âmbito jurídico do Estado, na medida em que é somente a partir deste corpo definido no caput do art. 1º que o Estado pode atuar e, assim, buscar seus objetivos (devidamente traçados nos artigos e incisos que lhe seguem).

É sabido, contudo, que, em matéria de direito, muitas vezes os conceitos carecem da objetividade que pensamos ser necessária para que todos possam compreender exatamente o que com eles se pretende dizer. E assim não deixaria de ser também com os princípios basilares do Estado (o chamado núcleo duro), apostos na Constituição. Assim, sem desconsiderar o especial papel desempenhado pela análise da evolução histórica dos conceitos, muitos desses somente conseguirão ser devidamente delimitados e especificados por meio das discussões político-jurídicas efetuadas pela sociedade e pelas instituições, até que sejam sedimentadas as ideias mais ou menos dominantes a seu respeito. E como fruto desses debates, outorga a Constituição a palavra final (ao menos do ponto de vista jurídico), ao Supremo Tribunal Federal, nossa Corte Constitucional. A propósito disso, especialmente nos últimos tempos, o Supremo Tribunal Federal tem sido chamado a delimitar na prática algumas questões envolvendo referidos princípios.

Em relação ao princípio republicano, o STF tem sido incisivo, por exemplo, na questão do nepotismo, tendo mesmo sido proposta a súmula vinculante n. 13, proibindo aos agentes públicos de todos os níveis o emprego de parentes, tendo em vista essa prática contrariar os princípios republicanos constantes no art. 37 da Constituição (impessoalidade, moralidade, etc.). Do mesmo modo, no tocante ao processo eleitoral, houve a discussão sobre uma possível proibição de candidatos processados serem eleitos, ou, ainda, a iniciativa do parlamento sobre matéria relativa o regime dos servidores públicos (cuja iniciativa Constitucional é do Poder Executivo – separação de poderes).

Em relação ao princípio federativo, uma aparente tendência do STF no sentido de prestigiar a autonomia dos Estados membros pode ser visualizada, por exemplo, na decisão que deu ganho de causa a Estado que decidiu legislar contrariamente aos interesses das indústrias, em favor da saúde e do consumidor. Outro caso foi o da lei estadual que garantia meia-entrada em espetáculos para doadores de sangue, considerada constitucional pelo STF, ou outra que exigia que as empresas fabricantes de café colocassem certas informações nos rótulos, ou, ainda, considerando inconstitucional a requisição da União de bens municipais em situações normais.

No tocante ao princípio Democrático (de Direito), o STF confirmou o referendo sobre a divisão do Estado do Pará, estendeu os direitos das Uniões Homoafetivas, e conduziu as discussões sobre as pesquisas com material genético humano, cotas para minorias, entre outros temas polêmicos que têm surgido nessa virada de século.

Mas a questão das definições e aplicações práticas dos princípios continuarão, especialmente na medida em que mais pessoas adentram na discussão, tornando-as efetivamente mais democráticas, e acirrando o embate político, com reflexos no seu viés jurídico, e moldando essas definições e utilizações às novas realidades e relações sociais que vão se formando ao longo do processo histórico.

REFLEXÕES E DIVAGAÇÕES - A morte do artista

"Quem matou o artista? Há assim várias hipóteses. E também vários suspeitos. Foi o martelo do operário? Ou foi apenas um acidente de trabalho? Foi a caneta do burocrata? Ou se intoxicou com a tinta dos carimbos? Ou foi o giz da sala de aula? Foi uma bala perdida? Ou ela era direcionada? Ou talvez tenha morrido de fome, para aumentar os lucros dos investidores?


O artista morreu, mas se recusa a ser enterrado
Levanta-se do caixão e corre desatinado
Nu pelos campos
Causando espanto entre as velhas senhoras da sociedade
As pessoas se espantam e gritam
E os senhores engravatados se reúnem:
O artista só faz perturbar a ordem!
E isso não é bom para os negócios
Quem vai conseguir enterrar o artista
e conseguir enfim estabelecer a ordem no mundo?

O artista tem o peito aberto
Por onde escorrem-lhe as entranhas
É agora um zumbi, um verme, um corvo
Transformando o podre em nova vida
E produz mau cheiro
Chafurda a morte
Tem um vômito ácido
Mas toma um Sonrisal® e segue em frente


Já não tem fígado ou pulmão
E o coração está em pedaços
E ainda assim, de suas tripas espalhadas,
Constrói sua obra-prima"

(Paulo A.C.B.Jr)