17 de setembro de 2009

Reflexão sobre a questão da previdência e a dívida pública no Brasil (2003)

Muito se tem falado ultimamente sobre a questão da previdência no Brasil. Dados aparentemente divergentes apontam para, do lado do governo, uma previdência deficitária, e, do lado da oposição, uma seguridade social superavitária. É necessário um certo distanciamento para descobrirmos que ambos, a seu modo, estão falando a verdade. O que acontece é que falam de coisas um pouco diferentes.

Como sabemos, no Brasil a seguridade social abrange os conceitos de previdência, saúde e assistência social. E, conforme as fontes de custeio definidas no artigo 195 da Constituição Federal, incidentes sobre a folha de salários, lucro, receita ou faturamento das empresas, concurso de prognósticos, etc (COFINS, CSLL, PIS, CPMF, etc), a seguridade social encontra-se, de fato, em situação superavitária. Quando o governo fala em déficit, está concentrando atenção em uma parte específica da seguridade social, que é a previdência. E dizer que a previdência é deficitária significa dizer que o que é arrecadado hoje sobre a folha de salários, não paga os atuais benefícios previdenciários(1). Trata-se, assim, de uma simples relação entre arrecadação e gastos, onde o que se arrecada (uma alíquota sobre os salários) não é suficiente para pagar os benefícios concedidos, a menos que haja injeção de outros recursos pelo governo, provenientes das outras áreas da seguridade social. Assim, necessário diferenciar o fato de a seguridade social como um todo ser superavitária, enquanto a previdência sozinha não consegue se manter (déficit de 17 bilhões em 2002 - não incluídos, ao contrário do que muitos pregam, os benefícios assistenciais da Lei Orgânica da Assistência Social-LOAS). Ideal para as contas do governo, obviamente, é que assim não fosse, e que o que fosse arrecadado dos segurados fosse suficiente para o pagamento dos benefícios previdenciários. Quando falamos da previdência do setor público, mais grave ainda é a questão, pois a situação hoje é de que os 11% que são arrecadados sobre o salário dos servidores, juntamente com a contraprestação patronal do Estado, não são suficientes para o pagamento das aposentadorias integrais dos atuais servidores inativos. No caso dos estados, são 2,5 milhões de funcionários públicos contribuindo para um universo de 1,54 milhão de aposentados e pensionistas (a relação é de 1 inativo para cada 1,65 na ativa), e no caso da União, o número de inativos supera os da ativa(2), o que está provocando um déficit da ordem de 39,2 bilhões segundo o governo (dados de 2002), e que aumenta a cada ano que passa. A oposição apresenta um déficit diferente, mas reconhece que ele existe quando, por exemplo, o PSTU afirma em seu sítio na internet que a Seguridade Social apresentou em 2002 um superávit de 48 bilhões, mas que cairia para 22 bilhões se fossem incluídos os regimes da previdência dos servidores públicos e dos militares. Assim, fica claro que o sistema previdenciário do setor público do país também não consegue se manter sozinho.

A ORIGEM DO PROBLEMA

Segundo estudo do economista Raul Velloso, especialista em finanças públicas, grande parte deste problema, tanto no caso do INSS quanto dos servidores públicos, surgiu quando da promulgação da Constituição de 88, quando os constituintes criaram certo número de despesas (a maioria destas legítimas, como no caso da aposentadoria rural e do benefício assistencial) ansiando pela quitação da chamada dívida social. Houve ainda a questão dos servidores públicos que anteriormente à Constituição regiam-se pela CLT, e que passaram a ter direito à aposentadoria integral, sem necessariamente terem contribuído. “Com isso, a participação dos funcionários públicos nos gastos previdenciários quase triplicou” – afirma Velloso. E continua: “Em 1987, antes da promulgação da Constituição, 25% das despesas não financeiras do Orçamento federal eram destinados ao pagamento dos benefícios do INSS e dos inativos e pensionistas da União. Em 2001, essas transferências haviam saltado para 61% do total da despesa. No mesmo período, os gastos com custeio e investimentos, que correspondiam a 51% do Orçamento, caíram para 13%. Houve, portanto, uma drástica redução dos recursos destinados à manutenção dos serviços públicos e à expansão da infra-estrutura a cargo do Estado.”
Mas, como pudemos ver, nem sempre foi assim, e a previdência já foi superavitária, no início, quando havia um número razoável de pessoas contribuindo para que outras pudessem receber os benefícios. Contudo, hoje este número está desequilibrado. Há uma grande margem de trabalhadores na informalidade (em torno de 50%) e houve um enxugamento da máquina estatal que diminuiu o número de funcionários ativos, que tem que sustentar um número maior de inativos. Impossível que se esqueça ainda da sonegação bilionária.
A realidade é que vivemos em um Estado carente de recursos, e déficits financeiros não ajudam em nada a melhorar a situação. Mas, existem ainda os que dizem que, com exceção dos servidores públicos que saíram “privilegiados” na Constituição de 88, a grande maioria contribuiu para receber sua aposentadoria, e que feitas as contas, cada um só receberia o que contribuiu. Assim, o governo só estaria retornando valores que lhe foram anteriormente adiantados. Não haveria que se falar em déficit. Contudo, essa idéia se constrói sob o argumento de que o governo deveria deixar “separado” a quantia arrecadada do indivíduo, para depois usar dela para pagar sua aposentadoria. E desta forma, o dinheiro das épocas de superávit seria usado para cobrir épocas deficitárias. Mas sabemos que a coisa não funciona desta forma, e que o governo, devido sua atuação social, não pode deixar estes valores guardados, esperando o momento da aposentadoria dos contribuintes – haja vista o caráter universalista e solidário do regime de previdência pública. Isto só seria possível em uma instituição privada. Vivemos em um Estado carente de serviços sociais que não pode se dar ao luxo de ficar guardando dinheiro. Assim, o dinheiro das épocas de superávit foi gasto. Se o foi bem ou mal gasto, não será essa reflexão importante pra o deslinde desta exposição. Muito destes recursos deve ter sido usado no pagamento das dívidas públicas, e uma quantia enorme de dinheiro é usada ainda hoje para o pagamento ou amortização desta dívida.

AUMENTO DO DÉFICIT

Importante dizer também que a questão principal, a meu ver, não é a existência do déficit em si, uma vez que cabe ao Estado, na maneira que o legitimamos, atuar neste tipo de questão, de maneira que uma contribuição sua não seria menos que a obrigação de um Estado que se pretenda social. Preocupante, porém, é o aumento vertiginoso do déficit a cada ano que passa. Este aumento é que precisa ser controlado sob pena de uma corrosão financeira irremediável.

FALTA DE RECURSOS

Faltam recursos para todos os compromissos do governo. Então, bom seria que a previdência pudesse sustentar-se a si mesmo, ou, ao menos, que o déficit parasse de crescer. Dizer que a questão pode se tornar insustentável em um futuro próximo não é mero “alarmismo” ideológico.
É claro que questões sociais e de direito devem ser levadas em conta, não podendo restringir-nos unicamente à questão econômica. Os custos, principalmente sociais, devem ser ponderados. Mas não podemos achar que o aspecto econômico é menos relevante, pois nenhuma política social eficiente pode advir de uma economia deficiente. Assim, é necessário que achemos formas de contornar a situação financeira.

EM BUSCA DE SOLUÇÕES

Algumas soluções nos são apresentadas, de maneira geral, pelas pessoas e pela mídia, como a “Reforma da Previdência” apresentada pelo governo (criação de teto, redução de benefícios, aumento da idade para se aposentar, contribuição dos inativos), que ataca principalmente os direitos dos servidores públicos, na expectativa de aumentar receita e diminuir despesas.
Há ainda quem defenda como solução do problema, e acredito que isso deverá realmente ser buscado, principalmente no caso do INSS, o aumento da base de arrecadação, tirando-se gradualmente os trabalhadores da informalidade, e torcendo para que a situação se equilibre no futuro sem a necessidade de reformas (pois não adiantaria nada aumentar a base agora e jogar o problema do déficit para o futuro, quando esta geração que agora contribui estiver se aposentando).
No caso do serviço público, para aumentar a base de arrecadação, segundo Luiz Bicalho, diretor do Sindicato dos Servidores Públicos Federais, a solução passaria por contratar mais 1 milhão de funcionários, o que é, sem dúvida, necessário. Porém, esta medida parece um tanto quanto impraticável, tendo em vista a precária situação econômico-financeira do Estado, e o comprometimento dos já escassos recursos. É também o que pensa o especialista em finanças públicas Raul Velloso: ‘‘O governo está falido. Não há como aumentar o número de servidores’’.
Há ainda os que dizem que uma mera redução da taxa de juros do governo, para que diminuísse o valor da dívida pública, ajudaria a reduzir o rombo. Acontece que, no meio econômico, é praxe a expressão que afirma que “juros não se reduzem por decreto”, e que é necessário, por sua vez, que as circunstâncias econômicas sejam favoráveis à sua queda. Discussões à parte, o déficit da previdência continuaria a existir estruturalmente, independentemente da taxa de juros, que só influenciaria a questão indiretamente, ao incentivar o crescimento da economia e da arrecadação.
A redução do pagamento da dívida, principalmente a externa (que acabaria por aumentá-la ainda mais no longo prazo), ou mesmo a moratória da dívida, são medidas anunciadas por muitos, mas, de certa forma arriscadas, uma vez que afetariam nossas relações internacionais, o que poderia acabar jogando a economia em uma situação ainda mais difícil.
A cobrança dos sonegadores também é muito anunciada como solução para o problema da previdência, mas isto passa por uma questão maior do que simples vontade pessoal de alguns, mesmo no governo, e acabaria servindo apenas para dar uma folga nas contas, pois aliviaria o déficit apenas por alguns anos (lembremos sempre que déficit é uma questão de fluxo, não de cobrança de atrasados).
Outra forma ainda seria o cancelamento das isenções dadas a entidades pretensamente filantrópicas, que aliviaria, sim, um pouco as contas, mas não muito, uma vez que não se pretendam cancelar todas as isenções, apenas as que se considerarem fraudulentas.
Há ainda os que sugerem taxar os banqueiros, os grandes proprietários, ou outras medidas do tipo. Tudo muito significativo, mas aparentemente vago.

A QUESTÃO DA DÍVIDA PÚBLICA

Parece que a questão principal ainda passa pelo pagamento das dívidas do governo. Ora, o governo tem uma dívida externa de aproximadamente U$ 200 bilhões. Pagou em 2001, algo em torno de U$ 43 bilhões (sendo 27 bilhões do principal e 16 bilhões de juros)(3). Parece claro qual o destino de boa parte do superávit da Seguridade Social, apontado pela oposição. O procedimento acontece da seguinte forma. Os impostos e contribuições arrecadados (inclusive os para a seguridade social) entram nos cofres do governo como uma receita administrada, da qual são extraídas suas despesas, e repassado algum valor para a cobertura dos déficits da previdência. O que sobra desta conta, adicionando-se algumas outras receitas e subtraindo-se novamente as despesas, é o superávit utilizado pelo governo para o pagamento da dívida.
Assim, há duas posições possíveis: a de quem é a favor da manutenção dos contratos e acordos firmados com os credores internacionais, e a de quem é contra, e prega a diminuição do pagamento da dívida ou mesmo a moratória. Quem é a favor do pagamento deve se preocupar com o fato de que, somente em se tendo um superávit maior do que o valor que é pago periodicamente a título de juros e amortização da dívida, pode-se efetivamente manter-se a dívida controlada. Caso contrário ela aumenta. É claro que os custos que estamos dispostos a suportar para atingir isso devem ser ponderados, decorrentes de uma decisão política. Os que são contrários ao pagamento da dívida, por sua vez, podem justificar a opinião de não quererem reformas do tipo das apresentadas pelo governo, uma vez que pensam em utilizar o dinheiro que seria usado no pagamento da dívida para cobrir os déficits, ao menos por um tempo, e investir no crescimento do país. São os dois cenários que imagino possíveis. Um, esforçando-se para equilibrar as contas do governo, gastando-se menos (ou de maneira mais eficiente) e/ou arrecadando-se mais (ou de maneira mais eficiente), através das reformas, para que se possam cumprir os contratos, e o outro, que é o enfrentamento dos credores e a redução ou suspensão do pagamento da dívida. É preciso ter consciência de que ambos os cenários acarretarão, em maior ou menor medida, algum tipo de ônus ao país.

Fica a sugestão para que, aos que quiserem ajudar a resolver o problema, ajudem a encontrar alternativas, posicionando-se frente às soluções que são apresentadas, indicando outras porventura não mencionadas, e preocupando-se com que elas sejam objetivas e viáveis. E tenham sempre em mente que, para resolver problemas como este, é necessário muito mais do que boas intenções.


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1 Jornal da FENAJUFE, junho/03. Entrevista com Maria Lúcia Fattorelli, auditora fiscal e diretora do Unafisco, p.5
2 Correio Braziliense, 02/03/2003. O círculo vicioso da Previdência do Brasil, por Fernanda Nardelli.
3 A Tribuna de Santos, 24/06/01, por Marcelo Eduardo dos Santos

Um comentário:

Paulo Alcir Cardoso Brocca Junior disse...

Este texto foi escrito em 2003, no auge das discussões a respeito da reforma da previdência. Atualmente, tendo em vista as alterações promovidas pela reforma - que possibilitaram um maior controle nas finanças -, bem como a ênfase no crescimento econômico e a queda dos juros, a discussão parece ter sido deixado um pouco de lado. Contudo, é de se acompanhar o desenrolar dos acontecimentos, eis que, apesar das medidas tomadas, a questão parece ainda não estar definitivamente superada, ao que novas alterações podem ainda ser esperadas (ainda que a longo prazo).

REFLEXÕES E DIVAGAÇÕES - A morte do artista

"Quem matou o artista? Há assim várias hipóteses. E também vários suspeitos. Foi o martelo do operário? Ou foi apenas um acidente de trabalho? Foi a caneta do burocrata? Ou se intoxicou com a tinta dos carimbos? Ou foi o giz da sala de aula? Foi uma bala perdida? Ou ela era direcionada? Ou talvez tenha morrido de fome, para aumentar os lucros dos investidores?


O artista morreu, mas se recusa a ser enterrado
Levanta-se do caixão e corre desatinado
Nu pelos campos
Causando espanto entre as velhas senhoras da sociedade
As pessoas se espantam e gritam
E os senhores engravatados se reúnem:
O artista só faz perturbar a ordem!
E isso não é bom para os negócios
Quem vai conseguir enterrar o artista
e conseguir enfim estabelecer a ordem no mundo?

O artista tem o peito aberto
Por onde escorrem-lhe as entranhas
É agora um zumbi, um verme, um corvo
Transformando o podre em nova vida
E produz mau cheiro
Chafurda a morte
Tem um vômito ácido
Mas toma um Sonrisal® e segue em frente


Já não tem fígado ou pulmão
E o coração está em pedaços
E ainda assim, de suas tripas espalhadas,
Constrói sua obra-prima"

(Paulo A.C.B.Jr)