“É fácil ser otimista, desconhecendo-se a realidade, apenas para que fiquemos em paz com nosso espírito. Ademais, conhecer a realidade é uma tarefa árdua, que pressupõe tempo e dedicação, o que é evitado pelas pessoas - que alegam outras prioridades -, por estarem plenamente satisfeitas pelo simples fato de serem otimistas.”
A inoperância objetiva do discurso ético (um ensaio)
É comum encontrarmos jovens “idealistas” (entre aspas por referir-se ao seu sentido comum, não-filosófico), que acreditam que a injustiça do mundo reside pura e simplesmente no fato de ele ser controlado por indivíduos com comportamentos antiéticos. Pretendem, assim, transformar o mundo através de reformas de caráter ético, ou ainda, através da tomada do poder, via meios legais, por pessoas com comportamento ético (e por tomada do poder consideram também a obtenção de cargos, preferencialmente de comando, no Executivo, Legislativo e Judiciário). Assim, segundo esses “idealistas”, bastaria que o poder estivesse nas mãos de pessoas éticas para que o mundo fosse um lugar bom de se viver. Equivocam-se, assim, a meu ver.
O discurso puramente ético é um discurso vazio, e quando não mal-intencionado, é, no mínimo, ingênuo. Antes de mais nada, a própria concepção do que viria a ser “ético” encontraria dificuldade de consenso, por tratar-se de conceito controverso, tanto quanto a definição precisa dos valores a que faz referência. Afinal, ética apresenta uma relação direta com os conceitos de “bom” e “certo” (bom ou certo para o indivíduo, para o grupo, para a sociedade, para o universo). Há aqueles que entendem que a ética não deve transcender os limites do grupo, aceitando que se tenham comportamentos que seriam por outros considerados antiéticos em relação aos que não pertencem ao seu grupo. Por exemplo, temos que um nacionalista pode considerar antiético prejudicar um cidadão de mesma nacionalidade, mas talvez não o ache prejudicar a um estrangeiro, cujos interesses estiverem, segundo seu juízo, em confronto com os de sua nação (e veja-se, como ilustração, como se dão as relações comerciais entre países vizinhos como Brasil, Argentina, Bolívia, Paraguai, etc.). Como outros exemplos dessa ética particular temos o que se chama comumente de ética dos presos, dos traficantes, da máfia, dos fundamentalistas religiosos, etc.
Contudo, ao longo dos tempos, a evolução das relações sociais tem ampliado o sentido daquilo que se considera protegido pela ética, de modo que é comum, atualmente, que seu alcance tenha passado a englobar a proteção de toda a raça humana. Há, no entanto, algumas tendências ainda mais atuais, porém minoritárias, que defendem uma ética universal, tentando englobar na definição de nossos comportamentos as conseqüências de nossos atos a todos os seres do universo[1]. E, assim, algumas correntes discutem se é antiética a experiência com animais (ao que muitos diriam que não, por acreditarem que essas experiências visam salvar indivíduos do grupo do qual fazem parte - qual seja, os seres humanos). Outros, porém, podem achar antiética a extinção de uma espécie, chegando a defender que se possa matar um homem para defender um animal pertencente a uma espécie em extinção. Outros achariam antiético matar um homem para defender um animal. E, da mesma forma, ainda hoje é possível que se encontrem os que limitem o senso ético ao seu grupo (família, clube, etnia, nação, etc.). De fato, é possível, inclusive, dizer que todos nós aplicamos um pouco este pensamento restritivo, ao defender os interesses de um familiar, amigo ou afim, contra os interesses de um estranho. E muito mais fácil seria fazê-lo quando esse estranho é considerado um inimigo.
A questão do certo e errado relacionada ao presente caso
Não pretenderei aqui estabelecer uma discussão a respeito da existência do certo e do errado, por entendê-la, além de demasiado polêmica, desnecessária ao fim ora proposto. Aqui, basta que se considere que cada indivíduo ou grupo pode ter concepções ou visões divergentes sobre o que é certo ou errado, posto que essa conclusão parece inegável. Da mesma forma como inevitável é o conflito de visões e interesses presentes neste fenômeno chamado sociedade. Dessa forma, a questão aqui proposta giraria em torno de saber quais as formas utilizadas para resolver esses conflitos de interesses e visões de mundo. Para isso, inicialmente, é necessário que se aborde a questão da natureza dessa contrariedade.
A natureza dos interesses contrários
O conflito de interesses é inerente à natureza - afinal a vida se alimenta de outra vida. Os animais se alimentam de plantas ou de outros animais, todos seres vivos. Dessa forma, não é errado pensar, por exemplo, que o interesse de um pessegueiro se contrapõe ao interesse da praga do pessegueiro - eis que, para sobreviver, esta última tem que atacar a planta (da mesma forma como o direito de existência do tamanduá com relação às formigas, ou do leão em relação à lebre, ou qualquer predador em relação ao seu jantar). E da mesma forma também com a existência do homem, que, por estar no topo da cadeia, prejudica a todos os demais, bem como a outros homens.
A questão da exploração
É sabido que desde o início da sociedade, a acumulação, necessária para o desenvolvimento desta, tal qual a conhecemos, só foi possível com base na expropriação e exploração. E com relação a isso, há basicamente três visões de mundo que merecem destaque (por representarem a visão da maioria da população).
Em primeiro lugar, há os que acreditam que a sociedade deve ser dividida de forma que os mais aptos dominem os menos aptos (afinal, esta é a lei que rege toda a natureza). Para estes, explorar um indivíduo considerado menos apto não pode ser considerada uma atitude antiética, por ser natural, pois, de fato, é assim que os seres vivos se relacionam.
Outros, ainda, concordando com a dominação, defendem que haveria um patamar mínimo de dignidade a que nem os menos aptos poderiam ser rebaixados, apesar de continuarem sendo dominados.
Uma terceira corrente, de menor força, defende que não deveria haver essa dominação.
Os primeiros são os liberais (em economia) e direitistas, os segundos os social-democratas e demais centro-esquerdistas, e os terceiros os de esquerda propriamente dita (ou o que muitos consideram extrema-esquerda) e os anarquistas.
Havendo conflitos de visões entre essas correntes, tenderão a prevalecer as concepções e vontades das classes e indivíduos que estão, no momento, no controle da sociedade (vontade esta que acabariam por chamar “senso de ética”, “justiça” e “bom senso”)[2].
Segundo alguns, foi para resolver esses conflitos históricos que chegamos ao sistema a que hoje chamamos democracia, que já existia de certa forma na Grécia antiga, só que restrita a poucos indivíduos. Hoje, ela estaria, em tese, disponível a qualquer cidadão, de qualquer classe. Assim, em um regime democrático, qualquer um teria a chance de defender seus interesses, desde que conseguisse arregimentar pessoas que com ele concordassem, e fazer-se inserir através de um representante eleito ou até mesmo diretamente, através de lei de iniciativa popular. Mas sabe-se que a prática é um pouco diferente.
A função do Estado
Sabe-se hoje que o Estado moderno foi a saída eficientemente encontrada pelas classes dominantes para que se estabelecesse certa condição de segurança (jurídica, policial, militar), de forma a proteger os cidadãos (normalmente os possuidores, como na Grécia Antiga) de quem quisesse atentar contra sua vida ou seu patrimônio. Afinal, havia naquela época (como há hoje), muitos proprietários e muitos desvalidos (e, como hoje, também estes mais que aqueles).
Assim, depois de assegurar a defesa contra possíveis invasões inimigas estrangeiras, era necessário se proteger contra as vontades dos desvalidos internos, que poderiam “reivindicar” à força uma certa redistribuição das riquezas nacionais. Mas e por que havia e ainda há estes desvalidos?, poder-se-ia perguntar. Ora, temos em primeiro lugar um problema de ordem física, eis que o patrimônio nacional (terras, riquezas, empreendimentos, etc) é limitado. E essa finitude material é prioritariamente apropriada pelos indivíduos e classes mais próximas dos centros de poder, que são as entidades responsáveis por regulamentar a distribuição e segurança deste patrimônio, dando legitimidade e garantindo “a cada um o que é seu”, ainda que por pura conseqüência histórica (heranças de todo tipo, e não por mérito pessoal). Para isso criou-se todo o aparato legal e administrativo, para defesa da ordem e do Direito, bem como as regras para sua manutenção. Criou-se também a maneira pela qual os indivíduos poderiam chegar ao poder para defender seus interesses: os partidos políticos; e criaram-se regras para a formação destes partidos. Uma das mais relevantes, a renúncia a ideais contrários às estruturas do Estado (ou seja, ideais revolucionários). Assim, todos os partidos que quiseram fazer parte do sistema tiveram que excluir de seus programas os ideais considerados antidemocráticos (luta de classes, abolição da propriedade, luta contra o capitalismo, etc – que eram comuns nos primeiros partidos de esquerda). Além disso, regras não explícitas foram se revelando, como a necessidade preeminente de acesso aos meios de comunicação (TV, jornais, revistas, rádio, etc.), pois, para serem votados, precisavam aparecer para os eleitores. No entanto, os meios de comunicação, como é sabido, apesar de concessões do Estado, são administrados por empresas privadas que, como todo empreendimento capitalista, têm interesses financeiros (uma vez que visam ao lucro). Assim, para ter acesso aos meios de comunicação (ou, até mesmo, para ganhar o direito de não ser prejudicado por eles), é necessário que se disponha de recursos financeiros, na correspondência direta da quantidade de votos que se quer arregimentar (salvo raras exceções – e que só fazem confirmar a regra -, de candidatos eleitos com baixos orçamentos de campanha). E como grandes fontes de recursos estão concentrados em poucas mãos, para se ganhar uma eleição, via de regra, é necessário um certo alinhamento com as pessoas que disponibilizam os meios que tornam possível vencer essa eleição. A título de exemplo, é de se lembrar da campanha presidencial de 1989, em que o então candidato Luis Inácio Lula da Silva foi demonizado pelos meios de comunicação, perdendo a eleição para aquele que defendia os interesses das classes dominantes. Anos depois, para conseguir vencer as eleições no Brasil, o então candidato Luis Inácio da Silva teve que remodelar seu projeto, para se tornar mais palatável às classes dominantes, e, depois de efetuados os devidos ajustes e alianças conservadoras, chegou ao poder, dando ainda maior legitimidade (ainda que de forma ilusória) ao sistema democrático criado por estas mesmas classes dominantes. Coisa rara, no entanto, tem acontecido em alguns de nossos países vizinhos, onde candidatos contrários aos interesses das elites e dos meios de comunicação venceram eleições para o comando do país. Uma possível especulação para isso é de que, tendo em vista o acirramento das contradições, de forma que a “anestesia” proporcionada pelos dominadores passe a não fazer todo o efeito necessário, um conjunto de circunstâncias tornaria possível a mobilização popular, diretamente ou em torno de um candidato saído de seu meio, e através das mesmas regras criadas pelas classes dominantes[3] (como usando o feitiço contra o feiticeiro), conseguem colocá-lo no poder. Sim, esses países são uma exceção interessante a ser analisada no devido tempo. Por ora, para confirmar a regra, basta ver como são tratados pela mídia internacional - pertencente às classes abastadas.
Democracia
Sabe-se que no regime democrático os poderes do chefe do executivo são limitados e sujeitos ao controle do parlamento (assim o é desde a Carta Magna do séc. XIII). Mas quem compõe o parlamento? Em teoria, seriam os representantes do povo. Na prática, porém, conforme já exposto, precisam ser os alinhados com os donos dos meios de produção (capitalistas e proprietários de todo tipo) ou do setor de investimentos financeiros (não-produtivos), que são os que possuem recursos para financiar suas campanhas (não esquecendo, como sempre, das pequenas exceções - mas que só fazem confirmar a regra). Assim, há que se lembrar que, ainda que saído do seio das classes oprimidas, o chefe do executivo, para fazer maioria e conseguir governar em nosso regime, tem que fazer concessões aos representantes de todas as classes ali representadas, incluindo empresários, banqueiros, latifundiários, grileiros, etc., cujos interesses estão mais quantitativamente representados no parlamento do que os das classes menos favorecidas economicamente. E isso é o que se tem a dizer no momento sobre o que se convencionou chamar democracia.
De volta à questão ética
Uma pesquisa realizada entre a população, incluídos assim representantes de todas as classes sociais, revelaria que a imensa maioria é favorável à defesa do princípio da dignidade da pessoa humana (no sentido de assegurar um patamar mínimo de condição de vida, abaixo do quê seria considerada uma existência subumana e, portanto, inadmissível). De fato, em termos abstratos, a imensa maioria é favorável a isso. Inclusive consta como um dos fundamentos da República brasileira e, além disso, da Declaração Universal dos Direitos do Homem (documento este que, de certa forma, vinculou a legislação de todos os países ocidentais). Inadmissível, assim, também, no âmbito das entidades supranacionais de Direitos Humanos, inclusive pertencentes à Organização das Nações Unidas, que se passe por cima deste princípio. Mas então, por que na prática é diferente, havendo diversas pessoas em diversos desses países vivendo em condições subumanas?
Ora, simplesmente porque, conforme o que já foi apresentado, há diversas visões sobre a maneira de se convalidar esse princípio na prática. Sem contar aqueles que defendem o direito à dignidade da pessoa humana a apenas certos grupos. Como exemplo, tem-se que pouca gente se espantaria ao ver desrespeitados os direitos humanos de um estuprador e assassino, encontrando-se este encarcerado em condições desumanas, sob o argumento de que ele tampouco respeita os direitos humanos dos outros. Há ainda os que imputam aos que vivem em condições de profunda indignidade humana a culpa por sua própria mazela, alegando que se encontram nessa situação porque não se esforçam, são preguiçosos, ou porque não querem estudar ou trabalhar, preferindo a vadiagem e a criminalidade, não se dando a si mesmos o direito à dignidade. Outros, mais intolerantes, deixariam de conceder esse direito a outras minorias, como homossexuais, travestis, negros, ou qualquer coisa que possa ser considerado indesejado por ser diferente ou por causar estranheza. É de fundamental importância que se saiba que pessoas com tal pensamento também compõem a sociedade e, no sistema democrático, têm direito de votar e ser votadas, e de ter seus interesses representados no Legislativo, Executivo e Judiciário, apesar de algumas de suas atitudes, quando escancaradas, poderem ser consideradas crimes pela legislação. No entanto, a maioria das pessoas sabe ser suficientemente discreta para não assumir seus preconceitos abertamente - quando mais por se tratarem de agentes políticos que dependem de votos populares para alcançarem ou se manterem em seus cargos -, apesar de fazê-los valer na prática, de forma disfarçada.
Ainda, acerca da efetividade do princípio da dignidade da pessoa humana, é importante falar de duas grandes visões que atualmente polarizam a discussão: os “intervencionistas” e os “liberais” (esses últimos tomados no seu sentido econômico). Segundo os “intervencionistas”, caberia ao Estado o papel de garantir o direito de dignidade aos cidadãos, mediante sua ferramenta mais comum, que é a redistribuição de renda e a disponibilização de serviços públicos, mediante a cobrança de impostos. Os “liberais”, por sua vez, normalmente pertencentes às classes mais altas, pregam que a intervenção do Estado deve ser extremamente limitada, não interferindo nas relações entre proprietários e não-proprietários, pois estas seriam auto-reguláveis, caminhando, ao final, para o equilíbrio e a paz social. A intervenção por parte do Estado, segundo esses, prejudica a economia e é responsável pelas mazelas por que passa a população. Há, contudo, correntes intermediárias (mas não menos relevantes), como a dos que defendem a intervenção do Estado em favor dos empresários e instituições financeiras, pois estes seriam as molas propulsoras do progresso e do desenvolvimento econômico, garantindo as condições necessárias para eliminar as mazelas da população, através da criação de empregos e do desenvolvimento. Pode-se inclusive dizer que, na prática, tem sido esta última a concepção dominante no mundo político, eis que, historicamente, os grandes proprietários utilizaram-se do Estado para seus proveitos particulares (não raras vezes sob a justificativa de um pretenso interesse social).
Assim, essas correntes, devidamente representadas no parlamento e na vida política da sociedade, apesar de, em tese, poderem concordar entre si acerca da necessidade de se defender o princípio da dignidade da pessoa humana (ainda que cada um a seu modo), divergem radicalmente sobre a maneira como fazê-lo. Dessa forma, pode acontecer de todos concordarem com o “fim” proposto, porém, na prática, negarem cada alternativa proposta que entendam restringir alguma de suas vantagens conquistadas legitimamente dentro do Estado de Direito. Ora, e uma vez que é impossível que se resolvam os problemas sociais sem que se atinjam algumas vantagens das classes dominantes, e considerando ainda que se ninguém consentir em abrir mão de algo, o Estado pode ficar de mãos atadas, a indignidade se perpetua. Normalmente, em seu discurso, os opositores às propostas distribucionistas alegam que há outras formas de resolver a situação, além das apresentadas, para que não precisem renunciar a seus “direitos”, o que converge ao final para que o Estado, ao precisar de recursos, tenha que “cortar de sua própria carne”, ainda que em detrimento dos serviços públicos, dos servidores que os prestam, ou dos direitos sociais[4]. Não é à toa a onda de retirada de direitos dos trabalhadores em geral, partes mais fracas na negociação, na divisão dos ônus na busca pela solução dos problemas do país. E, dessa forma, vão prevalecendo as estratégias defendidas pelas classes dominantes, por estarem mais devidamente representadas no poder.
A defesa dos interesses
Mas, perguntaríamos então: seria antiético defender seus interesses? E a resposta obrigatoriamente alertaria: segundo quem defende esses interesses, obviamente que não. Mas a questão que aqui se quer demonstrar é a de que dizer que isso ou aquilo é antiético não resolve, de fato, qualquer problema (afinal, sendo impossível uma operação mental que mude a opinião das pessoas, continuará prevalecendo a opinião de quem tiver mais força política para defendê-la).
A força política
Tenho que as relações do mundo são guiadas eminentemente pela política, sendo a legislação apenas um reflexo, muitas vezes não muito fiel, dessa realidade. Havendo confronto de interesses, as forças em choque são medidas, custos e benefícios de um possível confronto são avaliados, e após um certo grau de confiabilidade nas informações, a decisão é tomada. E, como já dito, isso funciona apesar da ordem legal. Afinal, ao decidirmos se devemos ou não seguir uma regra, ponderamos sobre o custo provocado pela restrição do nosso direito ao segui-la, bem como por não segui-la (p. ex.: se eu seguir a regra de velocidade máxima não poderei correr tanto quanto eu gostaria ou precisaria, mas se eu não segui-la há a chance de ser condenado a ter reduzido meu patrimônio via pagamento de multa; da mesma forma com o sonegador de imposto, beber e dirigir, etc). E assim também temos o ladrão, que age impelido pelo custo da necessidade ou desejo, medido contra o custo de uma possível punição (ainda que de forma não muito bem elaborada) ou, como também é comum (porém cada vez menos), substituindo o medo da punição por certos valores morais.
Mas o que se quer aqui dizer por força política? Ora, se procurarmos nos afastar das concepções culturais e ideológicas que moldaram o sentido da expressão, poderíamos chegar à conclusão de que é simplesmente a força de fazer valer sua vontade (pacificamente ou violentamente[5]), e ainda que sujeito a possível sanção ou retaliação. Nessa visão, é possível dizer que, apesar da existência das leis, o mundo permanece sendo regulado pela lei natural primordial, qual seja, a lei do mais forte. Exemplo comum é o dos grupos criminosos, que conseguem sobreviver desde que montem um esquema eficiente de resistência (muitas vezes com a conivência do próprio Estado). E assim também com as relações sociais. A lei é promulgada, mas pode não ser cumprida (como não o é, muitas vezes, sequer pelo Estado que a promulgou). Elas podem funcionar, no entanto, desde que sirvam ao interesse de quem tenha força política de fazer valê-las, ou, ainda, de quem tenha sorte de ter acatada sua pretensão pelos Tribunais. A própria interpretação da lei para a aplicação ao caso concreto, em um julgamento, é feita de acordo com o entendimento do magistrado sobre o que ele considera certo ou errado, resultando disso que juízes diferentes podem proferir decisões até mesmo contrárias para casos idênticos (revelando assim o caráter eminentemente ideológico - e, por isso, político - da decisão judicial).
Das possibilidades de resolução dos conflitos
Há basicamente duas formas de solução dos conflitos: o consenso e a imposição. Imaginemos, a título de exemplo, que lobos e cordeiros se reunissem para deliberar sobre a melhor forma de solução de suas controvérsias. Ora, o direito de sobrevivência dos lobos é naturalmente contrário ao direito de sobrevivência dos cordeiros. Sendo assim, qualquer decisão final seria de um consenso impossível, pois os lobos não poderiam abrir mão do direito de abater ao menos alguns cordeiros (eis que é isso que lhes garante a existência). Da mesma maneira o capitalismo, que tem mazelas inerentes a sua existência, dentre as quais o desemprego. Por outro lado, regimes comunistas tentavam garantir o pleno emprego aos seus cidadãos, sendo que, por razões diversas que não vêm ao caso no momento (por complexas e desnecessárias ao que aqui se pretende demonstrar), acabaram se mostrando ineficientes do ponto de vista econômico e, conseqüentemente, de certa forma, também do ponto de vista social, pois, hoje, é aparentemente impensável um Estado eficiente socialmente que não o seja economicamente, ainda que unicamente para que tenha recursos para garantir a qualidade de suas prestações sociais.
Quando os interesses são irremediavelmente contrários, vence quem tiver maior força política
Assim, considerando a complexidade de fatores que condicionam as estruturas de poder - construídas para adaptar-se aos interesses das classes que a construíram -, se quisermos realmente mudanças, parece óbvio que devamos agir por fora dessas estruturas. E é por esse motivo que a discussão sobre o certo e o errado não faz sentido aqui. O que se deve discutir, no entanto, é como esse certo e errado deve prevalecer sobre o certo e errado do outro, quando inexistir, porque inerente à natureza do problema, a possibilidade de consenso. E é exatamente isso que alguns “idealistas” e otimistas esquecem de inserir em seus discursos.
A esperança como mercadoria
A idéia de esperança que os jovens otimistas depositam no sistema é, de fato, muito útil à manutenção do próprio sistema. Manipulada por políticos mal-intencionados, essa esperança é passada adiante, para que infinitas tentativas sejam feitas a cada nova eleição. E sem mudanças significativas, mas com reformas pontuais - que não firam os interesses das classes dominantes -, o sistema é legitimado.
Assim, é importante que se tenha em mente que não basta a mera esperança otimista ou as boas intenções, que tanto alimentam os jovens. De fato, não podemos ter a ilusão de que o otimismo é capaz de mudar o mundo. Pelo contrário, faz-se necessário que sejamos radicalmente realistas, para que, conhecendo profundamente a sociedade na qual se vive, bem como as estruturas de poder (por mais que isso nos impressione de forma negativa ou que se acabe por ter consciência da dificuldade de mudança), estabelecer estratégias eficientes de resistência, que não sejam enfim meros engodos justificados em discursos abstratos, sem objetividade, que mais ajudam a perpetuar do que combater as formas de injustiça social.
Paulo Alcir Cardoso Brocca Junior, 07/06/2008
[1] Os menos “radicais” já conseguiram impor leis de defesa dos direitos dos grandes primatas, como gorilas e chimpanzés, enquanto outros defendem os direitos de todos os animais, e outros ainda gostariam de ver garantidos os direitos das plantas, rios, seres vivos, universo...
[2] Historicamente no mundo ocidental tem havido a predominância da primeira corrente (direitistas e liberais), alternando-se com pequenas participações da segunda corrente (social-democratas).
[3] Para dar legitimidade ao Estado que se criava, a burguesia, agora no poder, inseria na legislação princípios de caráter liberal e humanitário (igualdade legal, dignidade da pessoa humana, devido processo, etc), que tinham basicamente a função de garantir os seus próprios direitos (e os de sua classe) frente aos governantes e às outras classes. No entanto, as classes mais baixas, aos poucos foram conquistando alguns desses direitos, cedidos pelas classes dominantes quando se sentiam perigosamente pressionados, fazendo uso dessa “ampliação” de direito com intuito de dar uma maior legitimidade ao poder que exerciam (permanecendo, assim, no poder). Na maior parte das vezes, a sociedade civil consegue, no máximo, realizar pressão para que o governo realize certas reformas, demasiado tímidas, via de regra, mas que parecem sinalizar boa vontade das classes governantes para com a sociedade, dando assim maior legitimidade à classe no poder – veja, por exemplo, a defesa do consumidor, leis trabalhistas, leis dos crimes hediondos, etc.
[4] É para isso, inclusive, que discursam e apontam estratégias na época das eleições. Discursos do tipo “se o governo atual não consegue fazer, vote em nós, que saberemos fazer” são o discurso comum de qualquer oposição.
[5] Veja-se, por exemplo, todas as ingerências militares ou econômicas de Estados contra outros Estados e de classes sobre outras classes.
15 de março de 2009
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REFLEXÕES E DIVAGAÇÕES - A morte do artista
"Quem matou o artista? Há assim várias hipóteses. E também vários suspeitos. Foi o martelo do operário? Ou foi apenas um acidente de trabalho? Foi a caneta do burocrata? Ou se intoxicou com a tinta dos carimbos? Ou foi o giz da sala de aula? Foi uma bala perdida? Ou ela era direcionada? Ou talvez tenha morrido de fome, para aumentar os lucros dos investidores?
O artista morreu, mas se recusa a ser enterrado
Levanta-se do caixão e corre desatinado
Nu pelos campos
Causando espanto entre as velhas senhoras da sociedade
As pessoas se espantam e gritam
E os senhores engravatados se reúnem:
O artista só faz perturbar a ordem!
E isso não é bom para os negócios
Quem vai conseguir enterrar o artista
e conseguir enfim estabelecer a ordem no mundo?
O artista tem o peito aberto
Por onde escorrem-lhe as entranhas
É agora um zumbi, um verme, um corvo
Transformando o podre em nova vida
E produz mau cheiro
Chafurda a morte
Tem um vômito ácido
Mas toma um Sonrisal® e segue em frente
O artista morreu, mas se recusa a ser enterrado
Levanta-se do caixão e corre desatinado
Nu pelos campos
Causando espanto entre as velhas senhoras da sociedade
As pessoas se espantam e gritam
E os senhores engravatados se reúnem:
O artista só faz perturbar a ordem!
E isso não é bom para os negócios
Quem vai conseguir enterrar o artista
e conseguir enfim estabelecer a ordem no mundo?
O artista tem o peito aberto
Por onde escorrem-lhe as entranhas
É agora um zumbi, um verme, um corvo
Transformando o podre em nova vida
E produz mau cheiro
Chafurda a morte
Tem um vômito ácido
Mas toma um Sonrisal® e segue em frente
Já não tem fígado ou pulmão
E o coração está em pedaços
E ainda assim, de suas tripas espalhadas,
Constrói sua obra-prima"
(Paulo A.C.B.Jr)
E o coração está em pedaços
E ainda assim, de suas tripas espalhadas,
Constrói sua obra-prima"
(Paulo A.C.B.Jr)